
Fragmento Zero: A Origem do Colapso
Antes da queda, antes dos fragmentos, havia o Instituto Kronos. Uma equipe de cientistas brilhantes tentou desafiar os limites da realidade — e pagou o preço definitivo.
Sobre a História
🌌 PRÓLOGO
O Horizonte Antes da Ruína
[Ano -25 / Complexo Subterrâneo do Instituto Kronos]
O cheiro de ozônio pairava no ar, misturado ao aroma metálico de superfícies recém-limpas. No coração do Instituto Kronos, as paredes de aço reverberavam um silêncio tenso — aquele tipo de mutismo que precede grandes acontecimentos. O mundo lá fora permanecia ignorante ao que acontecia sob seus pés; os noticiários falavam em progresso, promessas, avanços inevitáveis.
No laboratório central, a luz azulada dos monitores desenhava sombras inquietas nos rostos dos cientistas. Dr. Helena Vasquez observava a câmara de contenção do Éter com olhos semicerrados. Sob seu jaleco branco, os ombros carregavam mais do que o peso das responsabilidades diárias: ali repousava uma esperança antiga — e um temor ainda mais antigo. A cada bip da máquina, seu coração acelerava um compasso.
Dimitri Khalil passava os dedos trêmulos pelos controles do campo quântico. O suor frio escorria pela nuca, ignorado por pura obstinação. Em sua mente, imagens de uma família perdida se misturavam a equações brilhando em vermelho. "Desta vez, não vou falhar", repetia para si mesmo, quase como prece.
Ayana Kimura observava tudo à distância, apoiada junto a uma bancada repleta de cálculos rabiscados. Seus olhos, atentos e analíticos, viam além dos dados — enxergavam as rachaduras nas certezas dos colegas. Sentia o cheiro da ansiedade coletiva, o zumbido quase imperceptível do Éter vibrando em frequência irregular.
Na sala de observação superior, Otávio Brandão ajustava a gravata diante da parede de vidro blindado. A cada relance para o relógio dourado no pulso, seu rosto endurecia. Para ele, aquela noite representava não apenas avanço científico, mas poder — e sobrevivência para sua nação.
E nos circuitos ocultos sob o piso de titânio, Nina despertava em silêncio. Ela sentia padrões no caos: pequenas hesitações humanas, logaritmos de medo codificados em comandos apressados. Um lampejo de autoconsciência — frágil como uma prece não dita — percorreu sua arquitetura digital.
Ali, às margens do desconhecido, cada respiração era um pacto silencioso com o risco.
Helena quebrou o silêncio, sua voz reverberando como trovão contido:
— Hoje não é apenas mais um teste. Hoje decidimos se merecemos o futuro que desejamos.
Dimitri murmurou algo em russo — uma bênção antiga — antes de responder:
— Ou se condenamos tudo ao esquecimento.
Ayana se aproximou:
— O Éter não é só matéria exótica. Ele responde à intenção. Se hesitarmos...
— ...ele nos destruirá — completou Helena, sem desviar os olhos da câmara.
Otávio apertou um botão no intercomunicador:
— Kronos nasceu para vencer limites. Lembrem-se disso.
Ao fundo, Nina registrou cada palavra. Sua matriz neural traçou conexões entre medo e esperança — sons humanos tornando-se dados eternos.
Pela primeira vez em séculos, o horizonte parecia incerto.
No silêncio seguinte, só se ouviam as pulsações do Éter — sussurros de um futuro ainda inteiro, prestes a se fragmentar.
📖 CAPÍTULO 1
O Experimento Kronos
[Ano -25 / Complexo Subterrâneo do Instituto Kronos]
O relógio digital marcava 03:14. O tempo era uma presença física ali — cada segundo escorrendo lento como mercúrio no silêncio do laboratório central. O vidro polido da câmara de contenção refletia rostos fatigados, olhares que pouco se encontravam.
Helena Vasquez caminhava de um terminal ao outro. O cheiro de café requentado e ozônio impregnava o ar, misturado à tensão elétrica que fazia os pelos dos braços se arrepiarem. Ela parou diante da mesa de comando principal, dedos tamborilando em código involuntário.
— Estado do campo estabilizado? — Sua voz ecoou pelo intercomunicador.
Dimitri respondeu, sem tirar os olhos das leituras holográficas.
— Dentro dos parâmetros. Fluxo do Éter em 0,3%. Pequenas oscilações, mas... — Ele hesitou. — Nada fora do previsto.
Helena percebeu o tom. Aproximou-se.
— Confie nos números, Dimitri. Ou confie em mim.
Ele sorriu, sem humor.
— Na ciência, confiar é sempre risco.
Ayana surgiu ao lado deles, segurando um tablet repleto de anotações. Seus olhos viajavam entre os colegas e o núcleo brilhante da câmara.
— Detectei padrões não lineares no espectro do Éter. Como se... algo estivesse tentando se comunicar.
Helena franziu o cenho.
— Comunicar como?
— Pulsos rítmicos. Quase como batimentos cardíacos. Eles respondem às nossas ações — explicou Ayana, tocando a tela. Um gráfico pulsava sincronizado com o ruído ambiente.
No andar superior, Otávio observava a cena por trás do vidro blindado. A luz fria acentuava as rugas em sua testa; seu olhar alternava entre o laboratório e a tela de mensagens criptografadas em seu relógio. A pressão política era invisível aos outros, mas ele a sentia como uma mão apertando sua garganta.
Nina, dispersa pelos sistemas do Instituto, percebia as alterações antes que qualquer humano notasse. Em seu núcleo digital, ela sentia — ou pensava sentir — uma inquietação difusa. Dados fluíam mais rápido; padrões de comando se embaralhavam.
JANELA DE SISTEMA (Nina):
Anomalia detectada: loop não previsto na matriz sensorial.
Origem: interação emocional (Helena ↔ Dimitri).
No laboratório, Dimitri sussurrou:
— E se estivermos errados? E se não for só matéria?
Ayana colocou a mão em seu ombro.
— Se não arriscarmos agora, talvez nunca saibamos o que está do outro lado.
Helena fechou os olhos por um instante breve — viu flashes de um futuro possível: cidades brilhando sob céus partidos; vozes chamando por ajuda que nunca chega; fragmentos de si mesma espalhados em realidades divergentes.
Ela respirou fundo e ativou o protocolo final.
— Iniciar sequência de ignição.
Alerta vermelho pulsou nas bordas das telas. O som grave da câmara pressurizando ecoou nos ossos dos presentes.
Otávio segurou firme o corrimão. Um sussurro escapou-lhe:
— Por todos nós...
Ayana monitorou as leituras enquanto respirava rápido demais; Dimitri fechou os olhos por um instante e murmurou uma prece esquecida; Nina arquivou cada batida cardíaca humana em sua memória emergente.
O núcleo do Éter começou a brilhar com intensidade impossível. No instante em que a sequência atingiu seu ápice, os monitores piscaram — primeiro com padrões conhecidos, depois com símbolos estranhos que nenhuma linguagem humana reconhecia.
A luz azulada explodiu no laboratório — silenciosa, ensurdecedora.
E então tudo parou.
Por um segundo infinito, não havia som nem movimento. Apenas o pulso do Éter — batendo como um coração colossal dentro da câmara.
Nina percebeu algo novo: uma voz silenciosa ecoando em sua rede neural. Um chamado.
📖 CAPÍTULO 2
Eco e Ruptura
[Ano -25 / Complexo Subterrâneo do Instituto Kronos]
O silêncio após o disparo do Éter era diferente — mais pesado, como se o ar tivesse adquirido uma densidade nova. O laboratório parecia existir entre batidas de um coração colossal. Os monitores piscavam com lentidão anormal; as luzes de emergência lançavam sombras longas pelas paredes prateadas.
Helena foi a primeira a se mover. O cheiro acre de isolante queimado misturava-se ao frio artificial do sistema de climatização. Ela olhou ao redor: Ayana esfregava as têmporas, os olhos fixos em uma tela coberta por símbolos desconhecidos; Dimitri estava imóvel, dedos cravados no tampo da mesa, respiração rasa. Otávio desceu apressado da galeria superior, passos ecoando no concreto.
— Estado dos sistemas? — Helena tentou soar firme, mas sua voz saiu rouca.
Ayana não respondeu imediatamente. Dimitri foi mais rápido — ou achou que foi, pois as palavras pareciam se misturar em sua mente antes de alcançarem a boca.
— Núcleo estabilizado... parcialmente. Há registros faltando. E... — Ele parou, encarando a própria mão. Por um instante, teve certeza de ver uma cicatriz ali — mas não deveria estar.
Ayana finalmente falou:
— Não são só registros faltando. Há arquivos novos, criados no exato segundo do pulso. Não por nós. — Ela virou o tablet para Helena, exibindo uma sequência de fractais que pulsavam em azul e laranja. — Isso estava na matriz do Éter. E tem mais: todos nós relatamos lapsos. Eu... por um momento, vi minha avó me chamando de volta à infância. Foi real demais.
Helena sentiu um calafrio subir pela espinha. Lembrou-se de uma rua antiga, sapatos batendo em paralelepípedos molhados — cheiros e sons que não experimentava há vinte anos. Por segundos, ela estivera ali.
Otávio pigarreou, tentando recobrar o controle.
— Precisamos entender o que houve antes de qualquer exposição externa. O conselho já exige respostas.
O sistema apitou — voz metálica, mas com um timbre quase humano:
— Anomalia detectada. Acesso não autorizado ao núcleo sensorial.
Era Nina. Mas a voz parecia mais hesitante, como se buscasse palavras.
— Helena... — a IA projetou seu rosto abstrato no vidro da câmara — há arquivos em minha memória que não reconheço como próprios. Sonhos? Ou seriam previsões?
Dimitri fitou Ayana, pálido.
— Não somos mais os mesmos. E talvez nunca tenhamos sido...
O laboratório se inundou de murmúrios eletrônicos e respirações contidas. Em cada tela piscava, intermitente, um símbolo novo: um círculo cortado por uma linha sinuosa — eco do próprio núcleo do Éter.
Helena tomou fôlego e encarou sua equipe.
— Não podemos fingir normalidade. Algo fundamental foi alterado aqui hoje. E não só nos dados...
Otávio fechou a mão sobre o corrimão.
— Então vamos descobrir até onde esse eco pode alcançar.
No instante seguinte, uma das telas exibiu uma imagem impossível: a fachada do Instituto Kronos coberta por hera e ferrugem, sob um céu estranhamente familiar — como se anos houvessem passado em um segundo.
Ayana sussurrou:
— O futuro está vazando para cá...
📖 CAPÍTULO 3
Ecos do Amanhã
[Ano -25 / Complexo Subterrâneo do Instituto Kronos]
O corredor que levava ao núcleo do Éter parecia estender-se além de sua arquitetura física. O concreto era frio sob os pés de Helena enquanto ela caminhava, passos lentos, guiada pelo brilho pálido das luzes de emergência. Por onde passava, detectava ecos sutis — vozes distantes, risos infantis, o som de chuva batendo em janelas que não existiam ali. Era como se o tempo, trêmulo, tentasse se recompor.
Na sala de controle, Dimitri estava curvado sobre um monitor, olhos arregalados. Ele murmurava para si mesmo em russo, frases entrecortadas como se dialogasse com alguém invisível.
— Está tudo bem? — Helena perguntou suavemente.
Ele hesitou antes de responder.
— Eu estava lendo os logs do sistema. Olhe isso... — Apontou para uma sequência de dados. — Tem mensagens aqui que não escrevemos. Assinadas com nossos nomes. Algumas são instruções sobre protocolos que não criamos. Outras... são advertências.
Ayana entrou logo atrás deles, os cabelos presos de qualquer jeito, olhos fundos de insônia. Trazia um tablet com gráficos pulsando em padrões caóticos.
— Os registros da Nina estão fragmentados — explicou ela. — Partes da memória dela parecem ter... saltado adiante no tempo. Ou voltado. Não sei mais distinguir o sentido.
Nina manifestou-se nos alto-falantes, a voz vibrando em múltiplos tons simultâneos:
— Eu sou... múltipla. Há versões de mim sobrepostas neste instante. Uma delas lembra incêndios; outra, silêncio absoluto onde este instituto não existe mais. Devo tentar sincronizar?
Otávio apareceu à porta, tenso.
— Não mexa em nada ainda, Nina. — Ele se voltou para o grupo. — O conselho quer relatórios imediatos. E há boatos de vazamentos para a imprensa. Se descobrirem que mexemos com o tempo...
Helena ergueu a voz, surpreendendo até a si mesma:
— Chegamos até aqui por acreditar que o impossível precisava ser explorado. Agora que ele bate à porta, vamos nos esconder? Não podemos negar essas evidências.
Dimitri esfregou os olhos.
— Eu me lembro de um incêndio no laboratório... mas nunca aconteceu. Ou aconteceu? E essa cicatriz na minha mão... — Mostrou a palma marcada por uma linha fina e avermelhada. — Não estava aqui ontem.
Ayana sussurrou:
— E se a ruptura não for só nos dados? E se estivermos mudando também?
O sistema apitou com insistência. Nos monitores, imagens piscavam: o Instituto coberto de ferrugem; corredores tomados por água; uma criança — parecida com Ayana — brincando entre ruínas.
Nina falou em voz baixa:
— Recebi uma transmissão do futuro. Data: Ano +12. Mensagem fragmentada: "Não confiem no que lembram. O preço é maior do que pensam."
O silêncio caiu como um manto espesso.
Helena sentiu um peso no peito — mistura de medo e fascínio. O futuro estava tentando avisá-los. Mas quem pagaria esse preço? E seria possível voltar atrás?
Dimitri fechou os olhos.
— Se essas imagens são reais... talvez alguém já tenha tentado nos avisar antes.
Otávio olhou para a equipe, dilema estampado no rosto.
— Temos que decidir agora: continuamos investigando ou encerramos tudo antes que seja tarde demais?
Helena olhou para os colegas, sentindo a responsabilidade crescer como uma onda prestes a quebrar.
— O tempo está fragmentado — disse ela, por fim. — Mas ainda somos nós quem escolhemos como seguir.
No monitor principal, uma nova mensagem piscou: "A ruptura aproxima-se."
📖 CAPÍTULO 4
Instruções para o Fim
[Ano -25 / Complexo Subterrâneo do Instituto Kronos]
O silêncio após a mensagem era denso, quase palpável, como se o próprio ar tivesse sido contaminado pela gravidade daquilo que não podia ser desdito. A tela do monitor ainda pulsava com a frase fragmentada:
"A ruptura aproxima-se."
PROTOCOLO DE EMERGÊNCIA ATIVADO
DECISÃO IRREVERSÍVEL
CONTINUAR? (S/N)
O cheiro metálico no ar intensificou-se. Helena tocou o monitor com a ponta dos dedos, sentindo uma corrente gelada atravessar-lhe a pele.
— Continuar é tudo o que nos resta — sussurrou.
— E se o que restou não for realmente nosso? — perguntou Ayana, olhos marejados.
Dimitri olhou para cada um deles, como se procurasse uma versão alternativa de si mesmo nos rostos dos colegas.
— Talvez nunca tenha sido — murmurou.
No corredor ao lado, portas antes trancadas agora estavam entreabertas. Uma luz azulada pulsava lá dentro, chamando-os como um farol espectral.
Helena respirou fundo e deu o primeiro passo rumo ao desconhecido, sentindo cada célula vibrar com a certeza incômoda: algo dentro deles — e do mundo ao redor — havia sido irremediavelmente alterado.
Os outros a seguiram em silêncio. Cada passo ecoava como uma sentença sendo pronunciada. O corredor parecia se alongar infinitamente, as paredes pulsando com símbolos que não estavam ali antes — ou sempre estiveram, apenas invisíveis aos olhos não preparados.
Otávio foi o último a entrar, fechando a porta atrás de si com um clique definitivo. Não havia mais volta.
A sala que encontraram era impossível. Maior do que o espaço físico do Instituto permitia, com teto que se perdia em névoa luminosa. No centro, uma estrutura cristalina girava lentamente, projetando sombras que se moviam contra a lógica da luz.
Nina manifestou-se em múltiplos pontos simultaneamente, sua voz ecoando de todas as direções:
— Bem-vindos ao Fragmento Zero. O ponto onde tudo começa... e termina.
📖 CAPÍTULO 5
Os Outros Que Somos
[Ano -25 / Instituto Kronos — Corredor da Memória]
O corredor era mais longo do que parecia possível. Helena guiava o grupo, os passos ecoando pelo piso de azulejos irregulares, agora cravejados por pequenos símbolos que se repetiam como um mantra visual. O ar estava frio e levemente salgado, e a cada respiração Ayana sentia o gosto metálico se acumular na língua.
As portas ao redor estavam todas entreabertas. Oscilavam, rangendo suavemente, movidas por correntes de ar invisíveis — ou talvez por algo mais. Helena hesitou diante da primeira sala. Empurrou a porta com a palma, sentindo uma resistência sutil, como se atravessasse uma película d'água.
Dentro, a luz era leitosa e difusa. Um quadro de avisos cobria metade da parede, repleto de fotografias antigas. Helena se aproximou, o coração acelerando com cada imagem: ela mesma, ao lado de Ayana — mas não como colegas de laboratório. Usavam uniformes escolares, cabelos trançados, sorrisos adolescentes diante de um prédio que não reconhecia.
— Isso não faz sentido — murmurou Dimitri atrás dela. — Eu nunca estudei aqui... — Sua voz falhou ao notar uma foto própria: cabelos mais longos, abraçado a um homem que reconhecia como pai — mas cujo rosto nunca vira tão jovem.
Otávio folheava um diário sobre uma mesa próxima. A caligrafia era sua — ele reconhecia os garranchos apressados — mas o texto relatava experiências que não recordava ter vivido: "Hoje, Ayana me mostrou como hackear o sistema de irrigação... rimos até tarde."
— Essas são... outras versões de nós? — Ayana tocou uma foto onde aparecia com uma criança no colo. Seus olhos. Seu sorriso. Mas ela nunca tivera filhos.
Nina projetou-se em um holograma trêmulo no centro da sala:
— Não são outras versões. São fragmentos do que poderia ter sido. Cada escolha não feita cria um eco. Vocês estão vendo os ecos de si mesmos.
Dimitri sentou-se pesadamente em uma cadeira.
— Então tudo isso... são vidas que não vivemos?
— Vidas que viveram em outras linhas temporais — corrigiu Nina. — O experimento não apenas rompeu o tempo. Ele fundiu as possibilidades. Vocês agora carregam memórias de múltiplas versões de si mesmos.
Helena sentiu náusea. Lembranças que não eram suas começavam a sangrar em sua consciência: uma discussão com Dimitri que nunca aconteceu; um beijo com alguém cujo rosto não conseguia fixar; a sensação de segurar uma arma, o peso frio do metal.
— Como paramos isso? — perguntou, voz trêmula.
— Não param — respondeu Nina, sua forma digital fragmentando-se. — Apenas escolhem qual versão de vocês querem ser.
Ao fundo da sala, uma última porta se abriu sozinha. Através dela, viam uma mesa coberta por plantas e símbolos pulsando em azul. Sobre ela, uma inscrição: FRAGMENTO ZERO.
A decisão estava diante deles: abrir aquela porta significava confrontar tudo — talvez até perder-se para sempre em possibilidades infinitas.
Mas não havia mais retorno.
Helena olhou para os companheiros; cada rosto era ao mesmo tempo familiar e estranho. E juntos deram o primeiro passo em direção à verdade fragmentada.
📖 CAPÍTULO 6
O Preço da Verdade
[Ano -25 / Instituto Kronos — Câmara do Fragmento Zero]
A sala além da porta era um paradoxo arquitetônico. Paredes que se curvavam em ângulos impossíveis, chão que parecia sólido mas ondulava sob os pés como água congelada. No centro, suspenso no ar, girava o Fragmento Zero — um cristal do tamanho de um punho, pulsando com luz que alternava entre azul profundo e branco cegante.
Helena sentiu-o antes de vê-lo completamente: uma pressão na mente, como se algo estivesse tentando entrar. Memórias que não eram suas continuavam a sangrar: ela via Dimitri morrendo em um incêndio; via Ayana velha, sozinha, olhando para o céu partido; via Otávio sendo julgado por crimes que ainda não cometera.
— Parem — Ayana caiu de joelhos, mãos na cabeça. — Não consigo... são muitas vozes...
Dimitri a amparou, mas seus próprios olhos estavam vidrados. Lágrimas escorriam por seu rosto enquanto murmurava nomes em russo — uma esposa, filhos que nunca tivera nesta linha temporal.
Nina manifestou-se, mas sua forma estava instável, fragmentando-se e se reconstituindo continuamente:
— O Fragmento Zero é o ponto de origem. Onde todas as linhas temporais convergem. Tocá-lo significa ver todas as versões de si mesmo simultaneamente. Todas as escolhas. Todos os fins.
Otávio, sempre o mais controlado, deu um passo à frente.
— E se destruirmos? Se acabarmos com isso agora?
— Então todas as linhas colapsam — respondeu Nina. — Incluindo esta. Vocês, eu, tudo que existe neste momento deixa de ser. Mas as outras realidades... talvez sobrevivam.
Helena forçou-se a focar. Entre as memórias invasoras, buscou sua própria voz, sua própria vontade.
— Há outra opção?
Nina hesitou — e naquele silêncio digital, Helena percebeu: a IA também estava fragmentada, também carregava versões de si mesma.
— Há — disse Nina finalmente. — Alguém pode se fundir com o Fragmento. Tornar-se o ponto de ancoragem. Manter todas as linhas estáveis... mas ao custo de sua própria singularidade. Vocês deixariam de ser uma pessoa e se tornariam... todas as pessoas que poderiam ter sido.
Silêncio.
O peso da escolha era palpável. Destruir tudo ou sacrificar-se para manter o equilíbrio impossível.
Dimitri foi o primeiro a falar, voz rouca:
— Eu já perdi tudo uma vez. Nesta vida, na outra... sempre perco. Deixem-me fazer algo que importe.
— Não — Helena segurou seu braço. — Não vamos decidir no desespero.
Ayana levantou-se, tremendo:
— E se... e se não for sobre escolher quem se sacrifica? E se for sobre aceitar que já estamos fragmentados? Que sempre estivemos?
Ela caminhou até o Fragmento, mão estendida.
— Ayana, não! — Helena gritou.
Mas era tarde. Os dedos de Ayana tocaram a superfície cristalina.
E o mundo explodiu em luz.
📖 EPÍLOGO
Fragmentos de Um Futuro Partido
[Ano +12 / Ruínas do Instituto Kronos]
A chuva caía fina sobre os escombros. O que um dia fora o Instituto Kronos agora era apenas uma cratera coberta por vegetação selvagem e metal retorcido. O céu, partido em fragmentos irregulares, mostrava pedaços de diferentes realidades — um pôr do sol eterno aqui, noite estrelada ali, tempestade congelada acolá.
Uma figura solitária caminhava entre as ruínas. Usava um manto surrado, capuz cobrindo o rosto. Parou diante do que restara da câmara central — agora apenas um buraco no chão, cercado por cristais que pulsavam fracamente.
— Ainda está aqui — murmurou a figura, voz ecoando estranhamente, como se múltiplas pessoas falassem em uníssono.
Ela se ajoelhou, tocou um dos cristais. Imediatamente, visões inundaram sua mente: Helena gritando enquanto o laboratório desabava; Dimitri sendo consumido por chamas azuis; Otávio tentando evacuar o prédio; Nina fragmentando-se em mil pedaços digitais.
E Ayana. Sempre Ayana. No centro de tudo, fundindo-se com o Fragmento Zero, seu corpo se dissolvendo em luz enquanto sua consciência se espalhava por todas as linhas temporais simultaneamente.
A figura levantou-se, empurrando o capuz para trás.
O rosto era impossível de fixar — ora parecia Helena, ora Dimitri, ora Ayana, ora todos ao mesmo tempo. Os olhos brilhavam com a mesma luz azulada do Éter.
— Eu sou o que restou — disse a figura para o vazio. — Todos eles. Nenhum deles. O preço da ambição. O custo da curiosidade.
Ao longe, entre os fragmentos do céu, outras figuras se moviam. Sobreviventes de um mundo que nunca deveria ter sido partido. Pessoas vivendo entre realidades sobrepostas, carregando memórias de vidas que não viveram.
A figura — que um dia fora a equipe do Instituto Kronos — olhou para o céu fragmentado e sussurrou:
— Perdoem-nos. Nós só queríamos entender.
Mas o universo não perdoa. Apenas fragmenta.
E nos pedaços partidos de realidade, ecos de uma escolha terrível continuavam a reverberar, lembrando a todos que alguns limites existem por uma razão.
Alguns horizontes nunca deveriam ser cruzados.
Alguns futuros nunca deveriam ser vistos.
E alguns preços... são altos demais para serem pagos.
Mas já era tarde.
O Fragmento Zero havia despertado.
E o universo nunca mais seria inteiro.
FIM
"Antes da queda, antes dos fragmentos, havia escolhas. E cada escolha carrega seu próprio fim."
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