
A Rebelião dos Silenciados
Em um regime que apaga vozes dissidentes, um grupo de silenciados se une para desafiar o esquecimento e reacender a esperança.
Sobre a História
A Rebelião dos Silenciados
Vozes que ecoam sob a cidade
Personagens Principais
- Maelis: Jovem surda, líder carismática da célula rebelde dos Silenciados; forte, sensível e marcada pela esperança.
- Darian: Ex-agente do Nexo, expulso por questionar ordens; busca redenção entre os marginalizados.
- Viko: Ancião das galerias, guardião das memórias orais e mapas secretos dos túneis.
- Rina: Criança órfã capaz de sentir fragmentos do Éter; símbolo de esperança e perigo.
Temas Centrais
- O poder da comunicação além das palavras
- Invisibilidade social e resistência silenciosa
- Conflitos éticos dentro da própria rebelião
Prólogo: O Chamado dos Subterrâneos
Mirastella — Subsolos, Ciclo 12.404
O silêncio ali era antigo — mais profundo que a noite, mais denso que a poeira secular que se acumulava nos túneis esquecidos sob Mirastella. Para Maelis, cada vibração do solo era um aviso, cada corrente de ar uma mensagem — lições ensinadas na ausência do som. Os Silenciados não eram poucos, apenas invisíveis. Moviam-se como sombras entre canos enferrujados e raízes retorcidas; mãos desenhando no escuro a linguagem dos que haviam sido privados do direito à voz.
Das galerias distantes vinha o cheiro de ferrugem misturado ao odor terroso de raízes úmidas. O eco dos próprios passos era abafado pelas paredes grossas e irregulares — concreto ancestral tingido pela umidade, marcado por inscrições em código gestual e gravuras de antigas insurreições. Cada símbolo era uma história de resistência, uma memória apagada nas ruas lá em cima, mas pulsante ali embaixo.
Maelis caminhava com leveza estudada, os pés descalços sentindo cada irregularidade do chão frio. O toque do solo era sua bússola: uma rachadura aqui, um desnível ali — sinais que só quem aprendia a escutar com o corpo podia decifrar.
À frente dela, pequenas lanternas improvisadas tremeluziam: frascos de vidro com luz etérea capturada por Rina, a menina órfã cujo dom era quase um milagre e quase uma maldição.
Naquela noite, porém, a tensão era quase física — como se o ar carregasse eletricidade suficiente para estalar entre os dedos. Viko aguardava no centro da galeria principal, sentado sobre uma pilha de velhos dutos. O ancião sempre parecia parte da própria estrutura: olhos semicerrados, mãos nodosas desenhando mapas invisíveis no ar.
Darian surgira pouco antes — passos cautelosos, ombros rígidos, olhar que insistia em varrer as sombras à procura de ameaças ou respostas. Exilado do Nexo, era um estranho ali; mas sua inquietação também era familiar àqueles que aprenderam a viver à margem.
Quando todos chegaram, a reunião começou. Não havia discursos; apenas gestos rápidos e olhares atentos. Era assim que se comunicavam: na linguagem dos corpos e dos olhos, nas mãos que voavam pelo ar com precisão silenciosa.
O conflito dos de cima chegou até nós, sinalizou Viko, as rugas de preocupação esculpidas em seu rosto marcado pelo tempo. Querem explodir uma comporta do Éter — inundar os túneis para impedir o avanço rebelde.
O gesto final foi um punho cerrado sobre o peito: perigo iminente, medo antigo.
Maelis sentiu o peso da notícia atravessar o círculo como uma onda fria. Olhou para Rina, sentada junto ao canto mais seguro da galeria. A menina brincava distraidamente com um fio de luz azulada — um fragmento do Éter flutuando entre os dedos pequenos, quase hipnótico.
Eles não sabem que estamos aqui?, perguntou Darian usando a linguagem gestual truncada de quem ainda aprendia com dificuldade.
Viko hesitou antes de responder. Talvez saibam. Talvez não se importem.
A resposta calou fundo em todos. Os Silenciados sempre foram vistos como resíduos — subprodutos indesejados da divisão social imposta por Mirastella. Não eram cidadãos; eram fantasmas. Invisíveis para as autoridades, ignorados pelos rebeldes da superfície. Restava-lhes resistir na surdina, costurando sobrevivência com esperança e medo em partes iguais.
Naquela noite, Maelis não conseguiu dormir. Caminhou entre os corpos adormecidos nos colchões improvisados — crianças encolhidas sob cobertores remendados, anciãos exaustos com as mãos entrelaçadas em sinal de prece muda. O ar ali era denso: cheiro de suor, terra molhada e algo indefinível — a mistura agridoce de desespero e resiliência.
Ela parou diante da parede onde estavam gravadas as marcas dos antigos Silenciados. Tocou cada traço com reverência: linhas retorcidas que narravam fugas impossíveis, círculos marcando pontos de encontro secretos, setas indicando saídas escondidas nas entranhas labirínticas da cidade subterrânea.
Na ausência do som, as memórias ganhavam forma nas superfícies frias e ásperas do concreto. Maelis lembrou-se da mãe — morta há anos numa das primeiras investidas do Nexo contra os dissidentes dos subterrâneos. Lembrou-se das histórias contadas apenas com gestos: lendas de rebelião silenciosa onde palavras jamais alcançariam.
Ela sentou-se ao lado de Rina, que dormia profundamente. A menina se remexeu e abriu os olhos por um instante: dois pontos brilhando na penumbra azulada do fragmento etéreo que mantinha consigo como um talismã.
Maelis sorriu e acariciou seus cabelos desgrenhados. Em silêncio absoluto, prometeu protegê-la — custasse o que custasse.
Darian observava tudo à distância. Ainda não se acostumara à quietude dos túneis; cada sombra parecia esconder perigos ou fantasmas pessoais. Viera parar ali fugindo do passado — e talvez buscando redenção por erros que jamais poderia desfazer.
No Nexo, aprendera a temer os diferentes; ali aprendera a admirá-los.
A sensação era estranha: perceber que as pessoas mais silenciadas eram também as mais resilientes. Que o silêncio coletivo podia ser mais ensurdecedor do que qualquer grito.
Darian aproximou-se de Viko quando percebeu que o ancião desenhava algo na poeira do chão — um mapa detalhado das galerias subterrâneas conectadas ao antigo sistema pluvial da cidade.
Você quer fugir?, perguntou Darian com gestos ainda hesitantes.
Viko balançou a cabeça negativamente antes de responder: Não fugimos. Sobrevivemos porque sabemos onde pisar.
O ex-agente ajoelhou-se ao lado dele e tentou reproduzir os gestos aprendidos nas últimas semanas. E se as comportas forem abertas?
O velho traçou um círculo ao redor de vários túneis no mapa improvisado: Há caminhos esquecidos até mesmo pelo Nexo… Mas não serão todos salvos.
O peso daquela verdade pairou entre eles como poeira suspensa no ar parado.
Horas mais tarde, Maelis reuniu os principais membros da célula rebelde dos Silenciados na sala maior das galerias — um espaço amplo onde antigas máquinas enferrujadas serviam agora como mesas e bancos improvisados.
Com um gesto firme e olhar decidido, ela iniciou a reunião:
Precisamos decidir agora: ficamos e resistimos ou tentamos evacuar antes da explosão?
Os olhares se cruzaram em silêncio tenso.
Uma mulher de cabelos grisalhos ergueu as mãos: Se formos embora… para onde? Lá em cima somos caçados ou ignorados.
Outro homem — jovem demais para já ter perdido tanta esperança — sinalizou: E se resistirmos? Podemos alertar os rebeldes da superfície! Talvez nos ajudem.
Viko interveio com autoridade serena: Alertar é arriscado. Revelar nossa existência pode trazer ainda mais perigo.
Maelis sentiu as dúvidas crescerem dentro de si como raízes sufocando o peito. Não podia decidir sozinha pelo destino de todos; mas sabia que precisava liderar.
Olhou para Darian buscando alguma certeza emprestada daquele estranho recém-chegado — alguém que conhecia os dois lados da guerra.
Ele apenas assentiu discretamente: Confiamos em você, dizia seu olhar.
A madrugada avançava lenta nos subterrâneos quando uma vibração distante fez tremer as paredes — sutil no início, crescendo aos poucos até tornar-se impossível de ignorar.
Maelis correu até o túnel principal seguida por Rina e outros membros da célula. Uma onda fria percorreu seu corpo ao sentir o fluxo alterado do Éter nas galerias próximas — era como se o próprio mundo sussurrasse avisos através das pedras.
No ponto mais profundo do túnel havia uma comporta antiga trancada por correntes grossas. Ali, Rina parou subitamente; seus olhos se arregalaram enquanto fitava algo invisível aos demais.
Maelis ajoelhou-se ao lado dela e tocou suavemente sua mão gelada.
A menina apontou para o Éter tremulando sobre a água escura — sinais sutis indicando instabilidade no fluxo mágico que mantinha parte das galerias seguras contra inundações.
Darian chegou logo atrás, ofegante:
Eles começaram… Estão desviando energia para explodir a comporta… Temos pouco tempo.
O medo espalhou-se como fogo pelas galerias enquanto Maelis tentava pensar rápido. Não havia tempo para debates ou planos complexos; era preciso agir.
Com um gesto ágil, ela convocou os mais rápidos para ajudar crianças e anciãos a tomarem o caminho lateral indicado por Viko — um túnel estreito esquecido até pelos mapas oficiais do Nexo.
Enquanto guiava o grupo pela escuridão opressora, Maelis sentia cada batida do coração ressoar nos ossos; não podia errar nenhum passo.
Atrás deles, o som abafado de explosões ecoou pelas galerias — vibrações tão potentes que arrancaram pedaços do teto e fizeram a água começar a invadir lentamente os túneis principais.
O caos ameaçou tomar conta dos fugitivos quando uma placa metálica despencou bloqueando parte do caminho alternativo.
Darian lançou-se imediatamente à frente junto com outro jovem rebelde; juntos ergueram a placa pesada com dificuldade suficiente para permitir que todos passassem rastejando por baixo dela.
Rina foi uma das últimas a atravessar; ao passar pelo estreito vão iluminado apenas pelo reflexo azul do Éter em suas mãos trêmulas, Maelis enxergou nela algo além do medo — havia ali uma centelha indomável de esperança infantil misturada à coragem silenciosa herdada daquele subterrâneo ancestral.
Quando finalmente alcançaram uma câmara segura afastada das galerias inundadas, o grupo parou para recuperar o fôlego. Crianças choravam baixinho enquanto adultos tentavam consolá-las com abraços apertados e gestos suaves prometendo proteção eterna mesmo diante da incerteza total.
Maelis observou todos à sua volta sentindo uma mistura vertiginosa de alívio e culpa — sobreviver às vezes parecia traição aos que ficaram para trás ou aos que nunca tiveram chance alguma.
Viko aproximou-se dela levando consigo o antigo mapa agora molhado pela água turva das galerias perdidas:
Esta não será nossa última fuga, sinalizou ele com pesar nos olhos cansados. Mas enquanto houver alguém disposto a resistir… haverá esperança.
Darian sentou-se ao lado deles completamente exaurido; respirava fundo tentando acalmar o coração disparado enquanto fitava Rina brincando com a luz etérea ainda presa entre seus dedos pequenos.
No silêncio reconquistado da câmara segura, Maelis percebeu algo novo — não era apenas sobrevivência o que restara aos Silenciados; era também redenção possível para todos aqueles dispostos a escutar além dos sons audíveis do mundo lá fora.
Naquela noite úmida e escura sob Mirastella, ela entendeu finalmente:
Os Silenciados não seriam mais apenas sombras perdidas entre ruínas e escombros esquecidos pela história oficial da cidade.
Ali começava sua rebelião — não feita de gritos ou explosões espetaculares…
Mas de sobrevivência teimosa e esperança cultivada no silêncio mais profundo possível.
Maelis fechou os olhos sentindo as primeiras lágrimas caírem suavemente sobre as mãos entrelaçadas às de Rina e Viko.
Sim… naquela noite os Silenciados fariam seu silêncio ecoar tão alto quanto qualquer grito já ouvido na superfície.
Capítulo 1: Ecos na Superfície
Mirastella — Subsolos e Margem Norte, Ciclo 12.405
O cheiro de ferrugem ainda pairava no ar quando Maelis acordou. O frio úmido do concreto impregnava sua pele e a fazia desejar o calor inexistente do sol da superfície. Ao redor, corpos encolhidos ainda dormiam — a maioria crianças, alguns velhos, todos marcados pela noite anterior. O silêncio era pesado, quase reverente; mas logo seria quebrado pelo movimento delicado das mãos, pelo roçar de pés descalços nos corredores.
Maelis levantou-se e caminhou até a pequena abertura que dava para uma das galerias externas, onde a água do Éter formava poças azuladas e pulsantes. Observou o reflexo ondulante, sentindo as vibrações que vinham do alto — passos apressados na superfície, carros do Nexo patrulhando as ruas, vozes abafadas por camadas de pedra e esquecimento. Ali embaixo, cada sentido era treinado para captar o mínimo sinal de perigo ou oportunidade.
Ela se ajoelhou e tocou a água, sentindo o frio resvalar pelos dedos. O Éter ali era instável; Rina alertara sobre isso na noite anterior. O contato prolongado podia ser perigoso para quem não possuía o dom raro da menina — mas para Maelis, era um lembrete físico de que o mundo estava sempre mudando, mesmo nas partes onde ninguém olhava.
Quando voltou para a câmara principal, Viko já estava acordado. O ancião desenhava na poeira do chão símbolos ancestrais, mapas de fuga e de esperança. Os olhos dele encontraram os dela por um instante e, sem palavras, comunicaram tudo: urgência, medo, necessidade de agir.
Rina dormia junto a uma pilha de cobertores velhos. Maelis aproximou-se com cuidado para não acordá-la — a menina tinha sonhos agitados, cheios de sussurros invisíveis que só ela parecia escutar. Por um momento breve, Maelis invejou aquela conexão misteriosa com o Éter; depois lembrou-se do peso que isso trazia para Rina e sentiu um aperto no peito.
Na superfície, Darian esgueirava-se entre becos sem iluminação. O céu era uma massa cinzenta sobre as torres metálicas de Mirastella — nuvens baixas filtrando a luz pálida do início do ciclo. Ele usava roupas comuns, sujas de poeira e suor; mas nada escondia o olhar atento de quem fora treinado para prever ameaças.
Darian não gostava dos ares abafados do subsolo. Viera para a superfície buscar informações — suprimentos também, se tivesse sorte. Andar entre os normais era perigoso: os olhos do Nexo estavam em toda parte, sensores ocultos detectavam padrões anormais de movimento ou temperatura corporal.
Ele parou diante de uma loja abandonada. As vitrines rachadas refletiam sua silhueta magra; o rosto encovado parecia mais velho do que realmente era. Pensou em Maelis, em Rina, nos outros que deixara dormindo entre paredes úmidas e promessas frágeis.
Quando percebeu um vulto se aproximando pela rua lateral, recuou instintivamente para as sombras. Segurou a respiração enquanto um grupo de patrulheiros do Nexo passava marchando — botas pesadas estalando no asfalto, armas prontas. O líder do grupo falava ao comunicador:
— Nenhum sinal dos fugitivos. As comportas foram fechadas com sucesso; se restou alguém lá embaixo, não sobreviverá por muito tempo.
Darian mordeu o lábio até sentir gosto de sangue. Sabia que estavam errados: alguns sobreviventes sempre encontrariam caminhos esquecidos. Mas também sabia que o tempo jogava contra eles.
Quando o grupo se afastou, ele correu para os fundos do prédio. Escalou uma grade enferrujada — o metal cortou sua mão esquerda, mas ele ignorou a dor — e entrou pela janela estilhaçada. Ali dentro era escuro e úmido; cheiro de mofo misturado ao odor ácido dos produtos químicos abandonados.
Procurou nas gavetas velhas até encontrar algo útil: um rádio portátil antigo (talvez ainda funcionasse), algumas pilhas enferrujadas e uma caixa com barras energéticas vencidas há dois ciclos. Guardou tudo na mochila e saiu pela porta dos fundos, atento a qualquer movimento estranho.
No caminho de volta à entrada secreta para o subsolo — um alçapão escondido atrás de entulhos na Margem Norte — Darian parou apenas uma vez para observar a cidade desperta acima dele. Mirastella parecia indiferente à dor dos que viviam abaixo; seus prédios brilhavam à distância como promessas ocas.
Enquanto isso, Maelis reunia os membros mais antigos da célula rebelde numa sala lateral das galerias. A luz fraca das lanternas improvisadas projetava sombras grotescas nas paredes descascadas.
O Nexo está reforçando as patrulhas na superfície, sinalizou ela com precisão calma. Precisamos decidir nossos próximos passos antes que descubram este esconderijo.
Uma mulher alta de olhar severo ergueu as mãos: Não podemos fugir para sempre. Se sairmos agora sem plano… seremos caçados como ratos.
Viko interveio: Temos rotas alternativas ainda desconhecidas pelo Nexo. Mas são perigosas — instáveis pelo fluxo irregular do Éter.
Outro jovem sinalizou: E quanto aos rebeldes da superfície? Não podíamos tentar contato?
Maelis hesitou antes de responder. Sabia dos riscos: revelar sua existência poderia condenar todos — mas ficar ali esperando seria morte certa também.
Talvez seja hora de confiar em alguém lá em cima, sinalizou por fim.
O debate continuou intenso — gestos acelerados, olhares cruzando-se em silêncio carregado de medo e esperança.
Quando Darian voltou às galerias subterrâneas — sujo, ofegante e com sangue escorrendo da mão — Maelis foi ao seu encontro.
Ela tocou seu ombro com delicadeza e perguntou com gestos rápidos: Conseguiu algo útil?
Ele assentiu e mostrou os itens encontrados. Depois fez uma pausa, fitando-a nos olhos:
— Eles acham que vocês morreram todos — falou em voz baixa, sabendo que Maelis lia seus lábios com atenção minuciosa — Mas estão errados. Precisamos sair daqui logo.
Maelis respirou fundo e sinalizou: Vamos tentar contato com os rebeldes da superfície.
Darian hesitou:
— Você confia neles?
Não tenho certeza, respondeu ela com tristeza nos olhos. Mas confiar no silêncio absoluto é pior.
Ele sorriu amargamente:
— Então vamos preparar tudo esta noite.
Horas depois, enquanto o grupo se preparava para abandonar o esconderijo, Rina acordou assustada por um pesadelo intenso — olhos arregalados fitando o teto encharcado.
Maelis correu até ela e tomou suas mãos geladas entre as próprias.
Rina olhou fundo nos olhos da líder e sussurrou (num fio quase inaudível):
— O Éter está mudando… Ele me mostrou caminhos… mas também perigos.
Maelis assentiu com gravidade:
Você vai guiar nosso caminho, sinalizou devagar para garantir que Rina compreendesse cada movimento.
A menina sorriu timidamente apesar do medo; uma esperança trêmula iluminando sua expressão suja de lágrimas secas.
O grupo partiu em silêncio pouco antes do amanhecer subterrâneo. Percorreram túneis esquecidos guiados pelos mapas de Viko e pelas impressões sensíveis de Rina sobre o fluxo do Éter.
Ao chegar à bifurcação final — um corredor estreito levando à superfície ou outro descendo para áreas ainda mais profundas da cidade oculta — Maelis parou para decidir.
Darian aproximou-se dela:
— Se subirmos agora… talvez nunca mais haja volta.
Maelis olhou para trás: viu rostos cansados mas determinados; viu em Rina a força frágil da infância sobrevivente; viu em Viko a sabedoria resignada dos que perderam tudo menos a fé.
Precisamos arriscar, sinalizou por fim.
E então subiram juntos pela passagem secreta rumo à superfície — desconhecendo se encontrariam aliados ou novos perigos à espreita do outro lado.
No instante em que emergiram sob a luz cinzenta da manhã fria de Mirastella, ouviram ao longe sirenes rompendo o ar… E entenderam que nada seria fácil dali em diante.
[GANCHO FINAL DO CAPÍTULO] No horizonte metálico da cidade hostil, as vozes dos Silenciados ecoariam enfim — não mais apenas entre paredes subterrâneas… mas no próprio coração da luta por sobrevivência.
Capítulo 2: Luzes e Sombras
Mirastella — Periferia da Zona Leste, Ciclo 12.405
O vento cortante da superfície atingiu Maelis assim que emergiu do alçapão, trazendo consigo o cheiro acre de ozônio queimado e fuligem das fábricas distantes. O céu permanecia cinzento, como se fosse feito de aço polido, e a luz filtrada pelas nuvens criava reflexos espectrais sobre os prédios de Mirastella. Ao redor, ruínas de habitações e veículos enferrujados formavam um labirinto de sombras alongadas, onde qualquer movimento podia ser espreitado pelos olhos do Nexo.
Maelis sentiu a diferença imediata: o silêncio aqui era relativo, pontuado por sons dissonantes — motores ao longe, alarmes esporádicos, passos apressados de quem preferia não ser notado. Ela gesticulou rapidamente para Darian e o grupo seguir rente ao muro, cada um com o corpo colado à superfície áspera, corações batendo no mesmo compasso apressado do medo.
Rina vinha logo atrás de Maelis, apertando a esfera azulada de Éter encontrada nos túneis. O objeto pulsava uma luz fraca entre seus dedos sujos. A menina observava tudo com olhos arregalados — não era a primeira vez à superfície, mas agora sabia que cada esquina poderia esconder tanto aliados quanto caçadores.
Viko fechava a fila, atento a qualquer sinal de perigo. O ancião murmurava para si mesmo antigas preces das galerias, dedos traçando símbolos na poeira acumulada sobre os tijolos partidos. Ele sabia que a fé servia menos para proteger do que para lembrar quem eles eram em meio ao caos.
Avançaram por vielas estreitas até um beco semiabandonado. Ali, Darian fez um sinal para aguardar e se aproximou sozinho de uma porta metálica marcada com o símbolo da resistência: três linhas cruzadas por um círculo incompleto — quase invisível sob a ferrugem e a sujeira do tempo.
Maelis sentiu o peito apertar enquanto observava Darian bater de leve — três toques breves, duas pausas longas. A senha mudou desde a última vez? E se ninguém respondesse? Ou pior: se alguém do Nexo estivesse esperando do outro lado?
Os segundos se estenderam como elásticos prestes a arrebentar. Então, finalmente, a porta rangeu e uma mulher jovem de cabelos raspados surgiu na fresta. Olhou Darian de cima a baixo antes de abrir espaço para ele e acenar ao grupo.
Entraram em silêncio no abrigo improvisado: paredes revestidas de mantas térmicas velhas, lanternas penduradas lançando sombras trêmulas sobre rostos cansados. O cheiro de sopa aguada misturava-se ao suor e ao medo contido. Várias pessoas — homens, mulheres, adolescentes — observavam os recém-chegados com uma mistura de desconfiança e esperança desesperada.
Darian apresentou Maelis em voz baixa, sabendo que ela lia seus lábios: — Esta é Maelis, líder dos Silenciados do subsolo. Vieram pelo corredor norte.
A mulher de cabelos raspados assentiu. — Eu sou Sora. Sei quem vocês são. Ouvi falar da menina… — Olhou rapidamente para Rina, que desviou o olhar, encolhendo-se atrás de Viko.
Sora conduziu o grupo até um canto menos iluminado, afastando curiosos com um gesto firme. A tensão era palpável; ninguém ali confiava facilmente.
Somos poucos, mas determinados, sinalizou Maelis discretamente para Sora — que respondeu em linguagem de sinais rudimentar: Aqui todos lutam… alguns ainda têm medo.
Darian interveio: — Precisamos de abrigo por algumas horas. Depois, queremos negociar uma aliança.
Sora hesitou. — Não temos suprimentos para muitos… E o Nexo está reforçando buscas desde ontem. Vocês trouxeram perigo para nós.
Viko ergueu as mãos com calma: Somos mais úteis vivos do que mortos. Conhecemos rotas secretas e fontes de Éter.
Sora ponderou por um instante longo demais, então cedeu: — Podem ficar… por enquanto.
Enquanto os adultos discutiam planos em sussurros e gestos tensos, Rina sentou-se num canto afastado. Observava as pessoas à sua volta — algumas dormindo encolhidas sob cobertores rasgados, outras afiando facas ou apenas encarando o vazio. Sentia o peso do Éter na palma da mão; seu brilho era mais intenso ali, pulsando em sincronia com seu coração acelerado.
Uma garota magra se aproximou devagar e sentou-se ao lado dela. Tinha cabelos desgrenhados e olhos escuros marcados por olheiras profundas.
— Você é aquela que sente o Éter? — perguntou num sussurro quase tímido.
Rina hesitou antes de responder com um aceno de cabeça.
— Eu sou Lina — continuou a garota — Meu irmão diz que você pode ver coisas… É verdade?
Rina mordeu o lábio inferior, insegura. Queria confiar, mas sabia dos riscos. Então fechou os olhos por um instante e deixou-se guiar pela sensação quente que subia do objeto em sua mão até o peito: viu fragmentos de imagens — corredores estreitos, água azulada correndo sob pedras antigas, sombras se movendo rápido demais…
— Vejo caminhos — disse baixinho — Mas também vejo perigos.
Lina sorriu com tristeza. — Aqui em cima só vemos muros.
Por um momento breve as duas ficaram em silêncio. Naquele instante compartilhado entre medo e esperança, Rina sentiu menos sozinha.
No centro do abrigo, Maelis reunia-se com Sora e outros líderes da resistência local. Todos sabiam que permanecer ali era arriscado: patrulhas do Nexo circulavam cada vez mais próximas; sensores podiam captar qualquer desvio térmico ou sonoro anormal.
— Você quer nos ajudar… ou só salvar seu grupo? — perguntou Sora com franqueza dura.
Maelis respirou fundo antes de responder em sinais lentos e firmes: Não há salvação individual. Se resistimos separados… todos cairemos.
Um homem alto de barba rala interveio: — E se o Nexo descobrir este esconderijo? Já perdemos três bases este ciclo!
Temos uma alternativa, sinalizou Viko. Rotas subterrâneas conectam até a Zona Central. Podemos evacuar sem chamar atenção… se colaborarmos.
Sora olhou para Darian: — Você confia neles?
Darian hesitou antes de responder: — Confio na luta deles… porque é igual à nossa.
Depois de minutos tensos, ficou decidido: ao cair da noite, os grupos uniriam forças para tentar atravessar até uma zona segura no centro antigo da cidade — passando pelos túneis desconhecidos do Éter.
Ainda restavam horas até o anoitecer. No abrigo abafado, os pensamentos de Maelis vagavam entre lembranças do subsolo e a incerteza do futuro. Sentou-se ao lado de Rina e tocou levemente sua mão.
Como se sente? sinalizou com delicadeza.
Rina sorriu cansada. — Tenho medo… mas também esperança. O Éter está me mostrando algo novo…
Maelis assentiu e olhou ao redor: crianças dormindo no chão duro; adultos armando barricadas improvisadas; o cheiro da sopa quase queimando na panela velha… Tudo parecia frágil demais frente à ameaça que crescia lá fora.
Mas era ali — naquela precariedade compartilhada — que a resistência encontrava sua força.
Quando a noite caiu de verdade sobre Mirastella e as sombras tomaram conta das ruas vazias, Sora deu o sinal silencioso: era hora de partir.
O grupo esgueirou-se para fora do abrigo em pequenos pelotões guiados por Viko e seus mapas mentais das galerias antigas. O caminho era tortuoso: saltaram muros baixos cobertos por musgo; cruzaram terrenos baldios cheios de lixo eletrônico; desviaram de feixes de luz azul lançados por drones do Nexo em busca incessante por fugitivos.
A certa altura, Rina parou bruscamente junto a uma tampa metálica no chão rachado. A esfera azul em sua mão brilhou com intensidade incomum.
— Aqui! — sussurrou ela para Maelis, apontando para baixo.
Viko ajoelhou-se rapidamente e examinou o local sob a luz fraca da lanterna: símbolos antigos riscados na tampa confirmavam sua suspeita — aquele era um dos acessos esquecidos aos corredores profundos do Éter.
Com esforço conjunto levantaram a pesada tampa e desceram um a um pela escada estreita envolta em escuridão viscosa, enquanto sons distantes denunciavam patrulhas cada vez mais próximas.
No instante em que Maelis foi a última a descer, ouviu gritos abafados vindos da rua acima e passos correndo em sua direção.
Ela respirou fundo antes de fechar a tampa atrás de si — mergulhando outra vez nas trevas familiares dos subterrâneos… mas levando consigo uma centelha renovada de esperança compartilhada.
Capítulo 3: O Sussurro do Éter
Subterrâneos de Mirastella — Galerias Profundas, Ciclo 12.405
O silêncio nos túneis era diferente do silêncio da superfície. Aqui, o som era engolido pelas paredes de pedra e concreto, abafado pelo passar dos ciclos e pelo acúmulo de memórias soterradas. Maelis sentia o ar mais denso, impregnado de umidade e do odor metálico do Éter que escorria em veios finos pelas rachaduras do piso. Cada passo ecoava suavemente, como se os corredores respirassem junto ao grupo.
O grupo avançava em fila, iluminado apenas pela luz azulada da esfera de Rina e por lanternas improvisadas. O frio se infiltrava nas roupas rasgadas, fazendo os ossos doerem em silêncio. Viko ia à frente, guiando-os por bifurcações quase idênticas, murmurando nomes antigos de ruas apagadas do mapa.
— Estamos seguros? — Lina perguntou baixinho, a voz quase engolida pelo espaço vazio.
Viko parou diante de uma porta enferrujada e traçou símbolos sobre ela, como se invocasse proteção. — Por ora, sim. Mas os ecos do Nexo não se apagam tão fácil. — Olhou para Maelis, que assentiu com gravidade silenciosa.
Rina apertava a esfera contra o peito. O brilho do Éter pulsava em sintonia com seu coração — ora suave, ora frenético. Ela fechou os olhos e viu, por um momento, imagens sobrepostas: o passado das galerias, crianças correndo sob luzes festivas; o presente sombrio, marcado por medo; e um vislumbre do futuro — uma porta se abrindo para a superfície banhada por uma aurora incerta.
O túnel estreitava-se adiante, obrigando-os a caminhar curvados. Darian ajudava Sora a carregar uma caixa com mantimentos, enquanto trocavam olhares rápidos e cúmplices. Entre eles havia um entendimento tácito: ambos haviam perdido muito para o Nexo; ambos sabiam que não sobreviveriam sozinhos.
— Você confia mesmo nessas rotas? — Sora sussurrou. — Confio no Viko — respondeu Darian. — E na Maelis. Eles nunca erraram o caminho. Sora sorriu com amargura. — Sempre há uma primeira vez.
Um rangido distante interrompeu a conversa. Todos pararam; os olhos se arregalaram na penumbra.
Maelis ergueu a mão, sinalizando silêncio absoluto. Por instantes intermináveis, apenas as gotas do Éter caindo no chão preenchiam o espaço entre os corações acelerados. Então, passos — leves demais para serem de adultos; talvez ratos, talvez algo pior.
Rina sentiu um arrepio subir pela espinha. O Éter em sua mão vibrou mais forte, tingindo as paredes com reflexos azulados. No reflexo das poças d’água, ela viu rostos — velhos conhecidos que partiram ou desapareceram nos ciclos passados. Era como se o próprio subsolo lhe sussurrasse segredos.
Lina percebeu a tensão em Rina e apertou seu ombro. — O que você vê? — Portas… algumas fechadas, outras esperando para serem abertas. — Você sabe qual devemos escolher? — Ainda não. Mas o Éter vai mostrar.
A travessia continuou tensa — cada bifurcação era um risco, cada ruído podia ser prenúncio de perigo. Em certo ponto, uma área mais ampla se abriu diante deles: antigas oficinas abandonadas, cheias de maquinário corroído e estalactites formadas por décadas de infiltração.
Viko parou no centro da sala e se ajoelhou junto a uma tampa de inspeção antiga. — Aqui é o limiar — sussurrou. — A partir daqui, estamos no território perdido.
Maelis sentiu o peso da decisão sobre os ombros magros. Olhou para cada membro do grupo — crianças exaustas, adultos marcados pelo medo e pela esperança — e ponderou os riscos. Avançar ou recuar? Não havia respostas fáceis. No gesto silencioso de assentir para Viko, ela assumia não só a liderança do grupo, mas também o peso das consequências.
Enquanto preparavam a descida ao território perdido, Darian notou algo estranho: marcas recentes na poeira junto a uma das saídas laterais. Pegadas pequenas, arrastadas — diferentes das deles.
— Não estamos sozinhos — murmurou. Sora aproximou-se cautelosamente e examinou as marcas. — Crianças? Ou algo que quer parecer uma…
Antes que pudessem decidir, um som agudo cortou o silêncio: um grito abafado vindo do corredor à direita. Todos se entreolharam; Maelis fez sinal para esperar, mas Rina já corria na direção do som, guiada pelo pulso do Éter.
Darian correu atrás dela enquanto Sora impedia os demais de irem juntos. — Fiquem! Se for uma armadilha…
O corredor era estreito e tortuoso. O som do grito se repetiu — mais fraco agora. Rina correu até encontrar uma pequena figura caída junto a um cano partido: uma criança suja, de cabelos desgrenhados, chorando silenciosamente enquanto tentava arrancar a perna presa sob entulho.
Rina ajoelhou ao lado dela. — Calma… vou ajudar. Darian chegou logo depois e juntos conseguiram liberar a criança.
— Qual seu nome? — perguntou Darian. A menina hesitou antes de responder: — Sali…
Rina segurou sua mão manchada de sangue. — Você está segura agora.
Mas antes que pudessem voltar ao grupo, ouviram passos apressados atrás deles — não amigos desta vez. Vozes metálicas ecoaram pelos túneis: soldados do Nexo.
Darian puxou as duas para um vão escuro enquanto sentinelas armados passavam a poucos metros de distância. O cheiro de ozônio queimado preenchia o ar; luzes vermelhas varriam as paredes como línguas famintas.
Sali estremeceu nos braços de Rina.
— Eles vão nos achar? — sussurrou. — Não se você confiar em mim — respondeu Rina com uma convicção que não sabia ter.
Após minutos que pareceram horas, os soldados passaram sem notar o esconderijo improvisado. Quando o caminho finalmente se mostrou seguro, Rina conduziu Sali e Darian de volta ao grupo.
Maelis abraçou as três ao chegar. Perigo? gesticulou rapidamente. Darian assentiu: O Nexo está perto.
O grupo apressou-se então para atravessar a próxima porta: a passagem final para os recônditos esquecidos onde o Éter fluía mais forte — mas também onde as lendas falavam de horrores antigos e promessas de liberdade.
Antes de atravessarem a soleira enferrujada, Rina sentiu um último sussurro no coração: Escolha bem… nem todas as portas levam à salvação.
[GANCHO FINAL DO CAPÍTULO]
Enquanto desapareciam na escuridão das galerias profundas, atrás deles ecoaram passos que não pertenciam a soldados nem aliados — mas à própria Mirastella subterrânea acordando após séculos de silêncio.
Capítulo 4: O Coração das Sombras
Recônditos Esquecidos de Mirastella — Ciclo 12.405
O limiar entre os túneis conhecidos e os recônditos esquecidos era mais do que físico — era uma barreira no espírito. Ao cruzarem a soleira enferrujada, o ar mudou: tornou-se pesado, carregado de umidade adocicada e um estranho calor que se insinuava pela pele. O Éter aqui não era apenas uma substância; era presença viva, pulsando sob os pés como um coração soterrado.
Maelis sentiu um aperto no peito. Cada passo parecia afundar em memórias alheias — rostos de antigos rebeldes, ecos de sussurros revolucionários misturados a gritos de medo. Ela olhou para trás: seu grupo hesitava, olhos arregalados em busca de conforto uns nos outros.
Viko foi o primeiro a romper o silêncio: — Se alguém quiser voltar… agora é a hora. — Sua voz saiu rouca, quase um pedido.
Ninguém respondeu. Até Sali, agarrada à mão de Rina, sustentou o olhar com uma determinação frágil.
O túnel se alargava em uma câmara forrada de raízes retorcidas e cristais azulados. Ali, o cheiro do Éter era quase inebriante — doce como fruta passada, mas cortante como ozônio.
Rina sentiu a esfera pulsar com intensidade inédita. A cada batida, flashes assaltavam sua mente: uma cidade antiga sobrepondo-se à Mirastella atual; crianças correndo por ruas livres; uma explosão de luz e, depois, silêncio absoluto.
Ela tropeçou, amparada por Darian.
— Está tudo bem? — ele perguntou, voz baixa.
— Vi… algo. Como se este lugar lembrasse de coisas que esquecemos.
Darian não respondeu. Olhou ao redor, tenso. Algo naquele espaço parecia observá-los de volta.
A câmara era abandonada, mas viva. Sons sutis — um gotejar ritmado, estalos secos de raízes se movendo — criavam uma trilha sonora inquietante. Lina esfregou as mãos para espantar o frio úmido.
— Por que ninguém nunca voltou desses recônditos? — sussurrou para Sora.
Sora hesitou antes de responder: — Dizem que quem ouve demais o Éter enlouquece… ou muda para sempre.
Viko apontou para uma parede coberta por inscrições antigas. Entre símbolos quase apagados pelo tempo, via-se o emblema da Rebelião dos Silenciados: três círculos entrelaçados por linhas em espiral.
— Foi aqui que começou — murmurou ele. — Os primeiros rebeldes se esconderam neste coração das sombras. Muitos desapareceram tentando acordar o poder adormecido.
Maelis se aproximou das inscrições. Passou os dedos sobre as marcas. O frio da pedra contrastava com o calor do Éter.
— Talvez não tenham sumido… talvez tenham se tornado parte deste lugar.
Ao fundo da câmara, uma passagem semicerrada por raízes ocultava um brilho tênue. Rina sentiu-se atraída; algo na esfera parecia chamá-la para além daquele limiar.
Darian segurou seu braço: — Cuidado. Não sabemos o que há aí.
Rina respirou fundo e avançou devagar. Ao atravessar as raízes, sentiu um arrepio intenso — como se atravessasse um véu entre mundos.
Do outro lado, encontrou um altar rudimentar feito de pedra e cristais de Éter. No centro, uma segunda esfera — apagada, rachada, mas ainda vibrante com restos de energia.
Rina ajoelhou diante dela. Espalhados ao redor do altar estavam objetos pessoais: um sapato infantil, um lenço bordado com iniciais esquecidas, cartas dobradas e manchadas pelo tempo.
Ela tocou a esfera rachada. Imediatamente imagens explodiram em sua mente: rostos marcados pelo sofrimento e pela esperança; mãos dadas num círculo; a promessa sussurrada de que “enquanto houver memória, haverá luta”.
Lágrimas quentes escorreram por seu rosto.
Enquanto isso, do lado de fora da passagem, Maelis sentiu a atmosfera mudar — como se uma corrente elétrica percorresse o ar. Viko ergueu a lanterna; as sombras nas paredes pareciam dançar ao ritmo do Éter.
De repente, projeções etéreas começaram a tomar forma: figuras translúcidas movendo-se entre eles — ecos dos antigos rebeldes? Sora recuou instintivamente.
— Não são hostis… — murmurou Lina, surpresa consigo mesma por sentir isso tão claramente. — Estão tentando nos mostrar algo.
As figuras gesticulavam em direção ao altar oculto e então apontavam para cima — para a superfície de Mirastella.
Rina saiu da passagem com a esfera rachada nas mãos. Seus olhos brilhavam com um fogo novo.
— Eles deixaram isso para nós — disse com voz trêmula. — Uma mensagem: a rebelião nunca morreu de verdade. Ela está no Éter… em cada um que lembra.
Maelis estendeu a mão para tocar a esfera também. Sentiu uma onda de calor e coragem renovar suas forças cansadas.
— Então não viemos buscar só refúgio… viemos buscar propósito.
Viko assentiu devagar: — E talvez… uma forma de lutar sem perder quem somos.
Sali apertou forte a mão de Rina: — Eu quero lembrar também.
Um estrondo distante interrompeu o momento: o teto das galerias tremeu levemente; poeira caiu dos cristais acima. Os ecos do Nexo estavam mais próximos do que nunca.
Maelis ergueu-se, voz firme: — Precisamos ir. Agora sabemos pelo que lutar.
Enquanto corriam pelos túneis, carregando as duas esferas — uma pulsante, outra rachada — sentiram atrás de si o peso e a esperança das gerações passadas. E adiante, pela primeira vez desde o início da fuga, vislumbraram mais que medo: vislumbraram futuro.
[GANCHO FINAL DO CAPÍTULO] No instante em que atravessavam para os corredores seguintes, Rina ouviu em sua mente um novo sussurro do Éter: Nem todo sacrifício é esquecimento. Em breve, terão que escolher qual memória salvar…
##Capítulo 5: O Peso das Memórias Galerias Interditadas de Mirastella — Ciclo 12.405
O corredor adiante parecia respirar — um vapor azul-acinzentado subia do chão, tornando o ar espesso, quase líquido. O grupo caminhava em silêncio, passos cuidadosos entre poças de Éter e sombras projetadas por lanternas trêmulas. Maelis sentia cada fibra do corpo pulsar com a presença das duas esferas: uma viva, ardente em sua mão; outra rachada, fria e pesada como um segredo antigo.
A cada curva do túnel, memórias se insinuavam sob a pele. Não eram só dela — eram de todos os que haviam passado ali antes, suas histórias pairando densas no ar saturado de Éter.
No abrigo improvisado junto ao altar, Viko desenhava com carvão marcas no chão. Círculos concêntricos, linhas quebradas — mapas de fuga ou mandalas de proteção? Os olhos do ancião estavam úmidos, mas seu rosto permanecia duro.
— Estas esferas… — murmurou ele, quase para si mesmo — Não são apenas relíquias. São depósitos de lembranças. Cada vez que as tocamos, algo se perde… ou se transforma.
Darian aproximou-se cauteloso. — Você teme que elas nos mudem?
Viko ergueu o olhar. — Temo que confundamos lembrança com identidade. O que somos sem aquilo que escolhemos esquecer?
Maelis ouviu a troca em silêncio. O debate ecoava dentro dela. Sabia do poder das memórias — mas também do risco de viver só de passado. Aproximou-se de Viko e, com gestos cuidadosos, sinalizou:
E se for preciso lembrar para sobreviver?
Viko tocou-lhe o ombro com ternura resignada. — Só peço que não nos percamos por completo.
Rina sentou-se junto ao altar com Sali ao lado. A esfera rachada repousava entre as duas — sua superfície refletindo fragmentos do rosto de Rina como um vitral estilhaçado.
— O Éter me diz que há um caminho — sussurrou Rina. — Mas não diz qual é o preço.
Sali apertou sua mão, olhos arregalados. — Você tem medo?
Rina hesitou antes de responder: — Tenho. Mas mais medo ainda de esquecer quem fomos.
No canto da câmara, Sora e Lina discutiam em voz baixa sobre os próximos passos. O grupo precisava decidir rápido: sinais inequívocos indicavam atividade do Nexo acima deles — vibrações regulares no solo, sons abafados de máquinas perfurando concreto.
Darian interrompeu o murmúrio coletivo:
— Não temos tempo para debates eternos. Se essas esferas podem nos proteger ou nos permitir escapar… precisamos usá-las agora.
Maelis olhou para o grupo, sentindo o peso da liderança mais forte que nunca. Tomou as duas esferas nas mãos e sentiu uma onda quente atravessar o corpo — imagens sobrepostas de infância, fuga, resistência; rostos que nunca conhecera a não ser pelas histórias de Viko e pelos sussurros do Éter.
Respirou fundo e sinalizou para todos reunirem-se ao redor do altar.
O grupo se aproximou em círculo apertado. Crianças olharam para adultos; adultos buscaram esperança nos olhos dos mais jovens.
Maelis ergueu as esferas diante do altar antigo. A luz azul da esfera viva fundiu-se à cintilação fraca da rachada. Por um instante, o ar vibrou como se todas as vozes dos Silenciados ecoassem juntas no espaço soterrado.
— Se tocarmos as duas juntas ao altar… — disse Viko em voz quase inaudível — talvez despertemos algo esquecido até pelo Nexo. Mas pode haver um preço alto demais.
Sora perguntou: — Que preço?
Viko fechou os olhos. — As lendas falam de rebeldes que entregaram suas memórias para salvar outros. Tornaram-se sombras… guardiões mudos deste lugar.
Maelis hesitou. Fitou Rina, buscando algum sinal na menina que parecia escutar mais fundo que todos.
Rina assentiu devagar:
— Se não fizermos nada agora… todos perderão tudo.
Num gesto decidido, Maelis pousou ambas as esferas sobre o altar de pedra e uniu as mãos às das pessoas ao seu redor. Um círculo nasceu ali — corpos conectados pelo medo e pela coragem compartilhada.
O Éter brilhou intensamente; faíscas azuladas dançaram sobre suas cabeças; imagens explodiram nas mentes de todos: fugas antigas, gestos silenciosos de resistência, mães ensinando filhos a ler sinais na penumbra dos túneis… E uma promessa sussurrada:
Enquanto alguém lembrar, ninguém estará sozinho.
De súbito, um estrondo abalou as galerias acima deles — poeira caiu como chuva áspera sobre seus ombros; vozes metálicas ecoaram distantes.
O círculo não se rompeu.
A luz das esferas expandiu-se até preencher toda a câmara; as sombras dos Silenciados antigos tomaram forma ao redor deles — presenças etéreas guardando cada membro do grupo; um exército silencioso feito de lembranças e perda.
A onda de energia atravessou os túneis numa explosão silenciosa: sensores do Nexo falharam; drones despencaram sem explicação; portas trancadas há décadas se destravaram sutilmente…
No centro da tempestade azulada, Maelis ouviu — não com ouvidos, mas com todo o corpo — a mensagem última do Éter:
Escolham o que salvar: a dor ou a esperança? A fuga ou a luta? Só quem lembra pode transformar.
Quando a luz cessou, o grupo permaneceu unido em torno do altar. Havia lágrimas nos rostos; havia também sorrisos tímidos e mãos entrelaçadas mais forte do que nunca.
Rina ergueu a esfera rachada — agora brilhando suavemente outra vez.
— Eles estão conosco — sussurrou.
Viko olhou para Maelis: — Não somos só sobreviventes. Somos portadores das vozes esquecidas.
Maelis assentiu com gratidão e temor misturados.
De longe, passos inimigos ecoaram nos corredores recém-liberados. Era hora de decidir: avançar para a superfície em busca dos outros rebeldes… ou permanecer ali e transformar aquele refúgio na semente viva de uma nova resistência?
Maelis levantou-se devagar e tomou a dianteira:
Agora é nossa vez de escolher pelo futuro.
[GANCHO FINAL DO CAPÍTULO]
Enquanto avançam pelos túneis desbloqueados pelas esferas do Éter, cada passo dos Silenciados reverbera não apenas nos corredores subterrâneos — mas também na própria história esquecida de Mirastella. E pela primeira vez em séculos, o silêncio começa a ser escutado na superfície...
##Capítulo 6: Chamados e Escolhas Corredores Desbloqueados de Mirastella — Ciclo 12.405
O ar ainda vibrava com resíduos de energia quando Maelis liderou o grupo pelos túneis recém-liberados. As paredes pulsavam com uma luz azul tênue, como se o próprio subsolo respirasse. A cada passo, sentiam-se observados — não apenas pelas memórias do passado, mas por possibilidades ainda não escritas.
O silêncio ali não era vazio; era carregado de promessas e incertezas. Maelis apertava a esfera restaurada em uma das mãos, enquanto Darian ia à frente com a lanterna improvisada. O som dos passos do grupo era abafado pelo tapete de poeira fina e raízes expostas.
— Para onde exatamente estamos indo? — Sora sussurrou, olhando para Viko.
O ancião parou junto a uma bifurcação, os olhos fixos em marcas antigas gravadas na pedra. — Os mapas dizem que este corredor leva à Velha Praça Central. Se quisermos buscar aliados… é por aqui. Mas também será mais vigiado.
Maelis sentiu o peso da escolha se avolumar dentro do peito. Olhou para trás e viu Rina encostada à parede, a esfera pulsando luz entre seus dedos. A menina parecia distante, os olhos vidrados como se olhasse para mundos sobrepostos.
— Rina? — Maelis se aproximou, tocando-lhe o ombro.
Rina piscou lentamente e sussurrou: — O Éter está diferente… Ele chama por algo acima, mas também teme o que vem de baixo.
Darian ouviu e se aproximou: — Isso é um aviso?
Rina hesitou antes de responder: — É um chamado… e um perigo ao mesmo tempo.
O debate logo se instalou entre o grupo reunido numa câmara protegida por raízes grossas. As lanternas projetavam sombras inquietas nas paredes úmidas.
— Não podemos ficar aqui esperando que o Nexo nos encontre outra vez — disse Darian, a voz carregada de urgência. — Precisamos agir enquanto temos vantagem.
Sora balançou a cabeça: — E se for uma armadilha? O Nexo pode estar esperando justamente essa movimentação.
Viko interveio com calma: — O poder do Éter nos deu novas rotas, mas também chamou atenção indesejada. Sentinelas já devem estar investigando as falhas nas defesas deles.
Maelis absorveu cada argumento. Olhou para Rina, que permanecia calada, os olhos fixos na luz azul pulsante.
— Rina, você sente para onde devemos ir? — perguntou Maelis em gestos lentos.
A menina hesitou. Então fechou os olhos e deixou a energia do Éter atravessar seu corpo. Uma imagem emergiu em sua mente: uma torre antiga na superfície, cercada por fumaça prateada — e uma voz familiar ecoando em meio ao caos: Venham. Agora é a hora.
— Há alguém nos chamando… lá em cima — murmurou Rina. — Mas não sei se é amigo ou inimigo.
No corredor lateral, Lina escutava algo além das vozes humanas: um ruído distante de máquinas — perfuratrizes do Nexo avançando pouco a pouco pelo subsolo. Ela correu até Sora:
— Eles estão vindo. Devem ter detectado a onda do Éter.
Um calafrio percorreu o grupo.
— Se formos para a superfície agora, talvez escapemos pelo tumulto — sugeriu Darian. — Mas se ficarmos…
— Podemos transformar este lugar em uma fortaleza — contrapôs Viko. — O altar pode nos proteger… por algum tempo.
Maelis ponderou em silêncio. Olhou para cada rosto ali reunido — esperança e medo misturados na mesma intensidade. Recordou as visões do altar: fugas, lutas, sacrifícios passados.
— Não vou decidir sozinha. Cada um deve escolher: subir e buscar aliados ou ficar e defender este refúgio até o fim.
O grupo silenciou, surpreso pelo convite à escolha coletiva. Um a um, começaram a opinar:
Sora: Ir para a superfície, buscar contato com os rebeldes. Viko: Ficar, proteger as memórias e as crianças. Darian: Subir, arriscar tudo por liberdade. Lina: Ficar com quem não pode lutar. Rina: Hesita… sente que precisa ir até a torre das visões. Outros se dividem; não há consenso claro. Maelis percebe que talvez estejam diante de um momento de ruptura — não apenas física, mas moral.
Antes que possam decidir definitivamente, um som diferente ecoa pelo túnel principal: três toques metálicos seguidos de duas pausas longas. Um código antigo dos rebeldes da superfície.
Darian corre até a entrada lateral e observa através de uma fenda: uma figura encapuzada acena furtivamente no fim do corredor iluminado pela luz azul do Éter. Ele faz sinal para Maelis e Sora.
Com cautela extrema, abrem uma passagem secreta entre as raízes e deixam entrar o estranho visitante. Trata-se de Mikal, um antigo aliado de Darian no Nexo — agora desertor e mensageiro dos rebeldes da superfície.
— Não temos muito tempo — sussurra Mikal, arfando. — O Nexo está usando sensores novos… mas parte deles falhou quando essa onda azul atravessou tudo ontem à noite. Vocês fizeram isso?
Maelis apenas acena com a cabeça, olhos desconfiados.
— Há uma brecha! Se subirem pela velha torre da Praça Central agora, podem alcançar os aliados antes que o Nexo refaça as defesas. Mas precisam decidir rápido… ou serão soterrados com o próximo avanço das máquinas.
O grupo se entreolha. O destino deles está suspenso num fio tênue entre coragem e cautela. Maelis toma a palavra final:
— Cada um que quiser subir comigo terá abrigo entre os rebeldes da superfície; quem ficar será protegido pelo altar — enquanto for possível. Não deixaremos ninguém para trás por escolha imposta.
Rina caminha até Maelis com decisão renovada:
— Eu vou com você até a torre.
Sora e Darian assentem também.
Viko abraça Maelis brevemente:
— Que o Éter guie seus passos… E que as memórias nos mantenham vivos aqui embaixo.
Metade do grupo permanece; metade parte em busca da esperança incerta acima do solo.
Enquanto avançam pelos túneis iluminados pela luz azul residual das esferas, Rina sente uma última onda de energia atravessar seu corpo: Para cada memória salva, outra precisa ser deixada para trás.
Ela olha para Maelis; ambas compreendem — toda escolha é também uma perda.
No instante em que pisam no alçapão que leva à torre antiga da Praça Central, ouvem ao longe o estrondo das máquinas do Nexo rompendo as camadas mais profundas do subsolo. O tempo deles está acabando.
Maelis respira fundo e faz sinal para avançarem:
Que nosso silêncio seja ouvido lá em cima.
[GANCHO FINAL DO CAPÍTULO]
No momento em que sobem à superfície pela torre esquecida, são recebidos por uma tempestade prateada — e ao longe, o som de vozes rebeldes ecoando entre as ruínas de Mirastella. O futuro dos Silenciados será decidido sob um céu que nunca viram tão aberto… nem tão ameaçador.
##Capítulo 7: Sob o Céu Aberto Ruínas da Praça Central de Mirastella — Ciclo 12.405
O ar não era mais abafado pelo peso da terra. Era frio e cortante — perfumado de ozônio e poeira antiga. Maelis piscou contra a luz inclemente do céu prateado, quase esquecida de como era sentir vento na pele. Atrás dela, Sora ajudava Rina a emergir pelo alçapão disfarçado entre escombros. Darian foi o último a sair, fechando a passagem com um gesto rápido.
A praça era um campo de destroços. Prédios antigos se inclinavam sobre fundações corroídas; a estátua da fundadora da cidade jazia partida ao meio, os olhos de pedra voltados para o chão rachado. Raios azulados serpenteavam pelas nuvens baixas, iluminando brevemente as marcas circulares deixadas por máquinas do Nexo.
Mikal indicou um beco lateral.
— Por aqui. Não falem alto. Eles caçam qualquer som incomum.
O grupo avançou em silêncio forçado, apenas os respingos da tempestade ecoando sob suas botas. Maelis sentia cada músculo tenso, lembrando-se do que ouvira sobre “os caçadores de ecos” — sentinelas do Nexo treinadas para detectar até mesmo gestos erráticos.
Rina parou de súbito junto ao muro coberto de musgo. Os olhos estavam fixos em algo invisível aos outros.
— O Éter aqui… grita — sussurrou, voz trêmula.
Sora se aproximou, tocando-lhe o braço.
— O que você vê?
Rina respirou fundo; o ar vibrava ao redor dela com eletricidade estática. Imagens fragmentadas — rostos esquecidos, mãos erguidas, crianças correndo por entre as pedras — dançavam diante de seus olhos.
— Eles morreram aqui… tentando fugir para baixo. Alguns restaram nas paredes… esperando serem ouvidos — respondeu, tocando o solo com a palma da mão.
Maelis ajoelhou-se ao lado da menina, sentindo uma dor estranha no peito — uma saudade de algo que nunca vivera.
No subsolo, Viko observava as crianças brincando em torno do altar enfraquecido. Ele passava os dedos pelas inscrições antigas, tentando decifrar preces de proteção esquecidas. Lina entrou apressada na câmara:
— O ruído das máquinas aumentou. Acho que estão perfurando mais perto… E há tremores nas passagens cegas.
Viko assentiu lentamente.
— Preparem todos. Se tiverem que correr… sigam pelos caminhos antigos do Rio Morto. Não olhem para trás.
Ele sabia que dizer não olhar para trás era em vão. Cada lembrança arrastava um olhar ao passado.
Na superfície, Mikal guiava o grupo até um abrigo improvisado sob uma marquise semi-destruída. Lá dentro, três figuras encapuzadas aguardavam em silêncio — rebeldes da superfície, exaustos e armados com velhas pistolas de pulso e lanças improvisadas.
Ao ver Maelis e Rina, uma delas levantou o capuz: era Juno, antiga amiga de Darian nos dias do Nexo.
— Vocês vieram mesmo… — disse Juno, surpresa e aliviada.
— Não tínhamos escolha — respondeu Maelis em gestos rápidos.
Mikal traduziu sem hesitar. Juno sorriu com ternura cansada.
— O Nexo sabe que vocês subiram. Estão trazendo um novo tipo de sentinela… Uma máquina capaz de silenciar até as memórias do Éter.
Rina tremeu ao ouvir isso; sua conexão vibrava como uma corda prestes a estourar.
— Eles querem apagar tudo — sussurrou. — Até aquilo que não pode ser dito…
O grupo trocou olhares apreensivos.
Darian apertou a mão de Maelis:
— Temos que fazer algo agora. Se destruirmos a máquina antes que chegue ao altar… talvez haja esperança.
No subsolo, Lina conduzia as crianças por um túnel lateral quando ouviu um som metálico ecoar — não o das máquinas do Nexo, mas o antigo sinal dos Silenciados: três batidas curtas seguidas de duas longas. A resistência ainda vivia ali embaixo.
Viko percebeu um calor súbito vindo das esferas do Éter; a rachada pulsava luz vermelha — um aviso de perigo iminente.
Ele sabia: logo precisariam decidir entre proteger as memórias ou sacrificar-se para salvar quem estava acima.
De volta à superfície, a tempestade se intensificava; relâmpagos prateados cortavam o céu e faziam as sombras dançarem nas paredes esburacadas. Juno consultou um pequeno transmissor:
— Se formos agora pela antiga linha do bonde, podemos interceptar a máquina do Nexo antes dela chegar à praça subterrânea. Mas precisaremos de alguém para distraí-los…
Maelis olhou para Rina, depois para Darian e Sora. Sabia qual seria o preço.
— Eu vou com Juno pela linha do bonde — sinalizou Maelis. — Mikal fica aqui com Rina e Sora; Darian faz a distração junto com as outras duas rebeldes.
O plano era arriscado — mas não havia tempo para hesitar.
Rina segurou firme na mão de Maelis:
— Se você não voltar… vou lembrar por nós duas.
Maelis sorriu com tristeza e orgulho misturados.
Ao saírem rumo à linha fantasma do bonde, o som dos caçadores de ecos ficou mais próximo — um zumbido metálico que fazia cada célula tremer de medo ancestral.
No subsolo, Viko reuniu as crianças junto ao altar:
— Se ouvirem minha voz… é porque ainda existe esperança. Se ouvirem só silêncio… lembrem do que ensinamos: enquanto alguém lembrar, ninguém estará sozinho.
Na superfície devastada pela tempestade prateada, sob um céu ameaçadoramente aberto pela primeira vez em gerações, Maelis correu lado a lado com Juno enquanto Darian e as outras rebeldes avançavam por outra rua para atrair os sentinelas mecânicos do Nexo.
Quando avistaram a máquina ameaçadora — uma torre sobre rodas lançando ondas opressivas de esquecimento por onde passava — Maelis soube que aquela noite decidiria não só o futuro dos Silenciados, mas também das memórias que resistiam sob os escombros de Mirastella.
Ela inspirou profundamente o ar frio e fez sinal para avançar:
Enquanto lembrar do passado… há futuro.
[GANCHO FINAL DO CAPÍTULO]
No instante em que Maelis se aproxima da máquina do Nexo junto à linha do bonde abandonada, uma onda de esquecimento começa a apagar tudo ao seu redor — nomes, rostos, até as vozes interiores dos rebeldes somem no ar rarefeito. Rina sente à distância um grito silencioso no Éter: para deter o esquecimento absoluto, será preciso sacrificar uma última memória preciosa…
##Capítulo 8: O Preço da Última Lembrança Linha fantasma do bonde — Superfície de Mirastella — Ciclo 12.405
O ar vibrava com uma ausência impossível — como se até as próprias moléculas hesitassem em existir na passagem da máquina do Nexo. Maelis sentiu a mente vacilar, memórias piscando e sumindo como vaga-lumes sufocados por vento frio. Ao seu lado, Juno cambaleou; lágrimas silenciosas escorriam enquanto ela tentava se lembrar do nome da irmã.
— Não pare! — sussurrou Maelis, agarrando o braço de Juno com força, os dedos tateando pelo tecido úmido da jaqueta. O cheiro de ozônio se misturava ao suor e ao medo, criando uma sensação pegajosa na garganta.
A máquina avançava sobre trilhos enferrujados, seu corpo de metal pulsando em tons opalescentes. Ondas de energia varriam as pedras, desfazendo grafites antigos, apagando histórias entalhadas nos muros há gerações. Por trás do visor translúcido, sentinelas sem rosto manipulavam alavancas — suas vozes abafadas por filtros mecânicos.
Maelis lembrou de sua mãe contando histórias sob o luar — ou foi um sonho? A dúvida doeu como uma ferida aberta.
No abrigo improvisado, Rina afundou de joelhos ao sentir o grito silencioso que atravessava o Éter. Era como assistir a um rio secando em tempo real: cada lembrança perdida se transformava em vazio ressonante.
Sora ajoelhou-se ao lado dela, puxando-a para um abraço.
— Você está aqui — murmurou Sora, embora não soubesse a quem tentava convencer.
Rina olhou para o céu prateado além das ruínas, os olhos fixos em algo que ninguém mais via.
— Se eu esquecer… quem vai lembrar deles? — perguntou, a voz sumindo.
Mikal respondeu em gestos lentos: Enquanto eu te ver, você existe.
Mas Rina sabia que existia um preço para manter viva a esperança. O Éter pulsava ao redor dela — uma oferenda silenciosa exigindo entrega.
Darian corria pelas ruas paralelas, perseguido pelo zumbido predatório dos caçadores de ecos. Ele atirava pedaços de metal contra paredes, disparava flashes de luz — cada distração comprando segundos preciosos para Maelis e Juno.
Por um instante, pensou ver o reflexo de seu próprio rosto em uma poça d’água — e não reconheceu os próprios olhos. Quantas versões dele já haviam sido apagadas pelo Nexo? Quantos amores e medos restavam em algum canto esquecido?
No subsolo, Viko reunia as crianças junto ao altar enfraquecido. O perfume do Éter era agora quase imperceptível; as inscrições brilhavam em vermelho pálido. Lina tremia ao seu lado.
— Eles estão chegando? — sussurrou ela.
Viko assentiu devagar.
— Estamos todos sempre chegando… ou partindo. Mas hoje talvez tenhamos que deixar algo para trás para que outros possam caminhar adiante.
Ele tocou o altar. Lembrou do nome de cada criança — nomes que talvez logo se perdessem no esquecimento coletivo. Uma escolha se desenhava diante dele: sacrificar sua própria história para reforçar o véu protetor sobre o grupo? Ou confiar que alguém acima manteria acesa a chama da memória?
Na superfície devastada, Maelis e Juno chegaram à frente da máquina. O vento chicoteava poeira e faíscas; relâmpagos riscavam a praça com luzes fantasmagóricas.
— Aqui! — gritou Maelis, atraindo o olhar vazio dos sentinelas encapuzados.
Ela atirou uma esfera de Éter rachada sob as rodas do veículo. Por um instante, tudo parou: o som sumiu, as cores tornaram-se opacas, até mesmo a dor pareceu hesitar.
Então veio um clarão agudo — não de luz, mas de sensação: uma sequência infinita de lembranças pressionando contra as barreiras do esquecimento. Maelis sentiu-se criança outra vez; ouviu risos antigos; viu rostos que nunca conheceu mas amava mesmo assim.
Mas para cada memória resgatada, outra era tomada pela máquina: o nome de sua primeira professora sumiu; a cor preferida de seu pai evaporou-se; uma canção que lhe dava coragem virou só silêncio no peito.
Juno caiu de joelhos ao lado dela, murmurando nomes como preces.
Rina percebeu a decisão — não apenas sua, mas de todos conectados pelo Éter. Uma troca era inevitável: alguém teria que abrir mão da memória mais preciosa para selar a ruptura criada pela máquina do Nexo.
Ela fechou os olhos e buscou dentro de si aquela lembrança: o toque cálido da mãe em uma manhã fria; risos ecoando sob lençóis pendurados; uma promessa feita entre lágrimas na infância. Se entregasse isso… quem ela seria?
Sora chorava baixinho ao seu lado.
— Não faça isso sozinha — pediu.
Rina tocou-lhe o rosto com delicadeza.
— Se eu esquecer de você… me encontre outra vez.
Então permitiu-se entregar a lembrança mais antiga ao fluxo do Éter — sentiu-a dissolver-se num clarão prateado que atravessou ruas, túneis e corações partidos.
No subsolo, Viko sentiu a onda percorrer as pedras. O altar brilhou forte por um segundo antes de silenciar totalmente. Ele soube naquele instante: alguém tinha pago o preço necessário lá em cima.
As crianças olharam para ele esperando palavras. Viko sorriu com ternura resignada.
— Agora somos livres para lembrar… ou esquecer do nosso jeito.
Na superfície, a máquina do Nexo estalou com faíscas azuis e parou abruptamente sobre os trilhos. Os sentinelas recuaram confusos; ondas de energia vibravam sem direção definida.
Maelis abriu os olhos — sentiu falta de alguma coisa fundamental em si mesma. Juno também chorava por algo perdido que não sabia nomear.
Mas ambas sabiam: haviam impedido o apagamento total. Havia espaço para reconstruir o que restasse — mesmo que incompleto, mesmo que partido.
Ao longe, Darian apareceu mancando entre os escombros; Rina erguia-se lentamente com Sora e Mikal ao lado; Viko guiava as crianças pela antiga escadaria até o abraço frio da tempestade prateada.
Por entre relâmpagos e fumaça azulada, Mirastella respirava — esquecida, sim, mas ainda viva.
[GANCHO FINAL DO CAPÍTULO]
Quando o grupo se reúne sob a chuva metálica da nova manhã, percebem que cada um perdeu algo essencial — mas também ganharam novas cicatrizes compartilhadas. Rina olha para Sora sem reconhecê-la plenamente… até sentir uma estranha ternura inexplicável brotar no peito. Em silêncio, todos entendem: nem todo esquecimento é fim — às vezes é semente para um novo começo.
##Epílogo: Entre o Esquecimento e a Aurora
Praça Central de Mirastella — Amanhecer pós-tempestade
Durante horas, a tempestade prateada persistiu sobre as ruínas de Mirastella. O céu parecia não decidir entre o cinza e o azul, e a cidade respirava como se acordasse de um longo sonho confuso. Entre poças de água metálica e fragmentos de pedra, os Silenciados se reuniram — divididos entre o alívio e a estranheza de não reconhecerem tudo ao redor e dentro de si.
Maelis caminhou devagar pela praça, sentindo a ausência de certos nomes, cheiros e vozes no peito. Uma saudade sem objeto. Ainda assim, seus passos eram firmes. Ao seu lado, Juno observava as marcas deixadas pela máquina do Nexo: linhas opacas onde antes havia inscrições de infância. Juntas, começaram a riscar novos desenhos nas pedras úmidas — traços inseguros, mas cheios de intenção.
Rina sentou-se sob a sombra partida da estátua da fundadora. Sora se aproximou silenciosa. Por um instante, ambas ficaram lado a lado sem saber o que dizer ou lembrar. Então Rina pegou um pedaço de carvão e desenhou um círculo aberto no chão.
— O Éter… está diferente — murmurou, sem saber se falava para Sora ou para si mesma.
Sora sorriu com tristeza gentil. — Talvez seja porque agora ele também sente falta de algo.
Rina não recordava exatamente quem Sora era para ela; mas ao tocar a mão da outra menina, sentiu um calor inexplicável, como a lembrança de um sonho bom esquecido ao acordar.
No subsolo, Viko caminhava pelos túneis esvaziados ao lado das crianças que sobreviveram. O altar estava apagado — uma pedra comum outra vez. Ele olhou para os pequenos e começou a contar uma história inventada ali mesmo, misturando fragmentos de lendas antigas com detalhes reais dos dias recentes.
— Uma vez houve uma cidade onde todos esqueceram seus nomes… mas nunca esqueceram como proteger uns aos outros — dizia ele. As crianças ouviam atentas, olhos grandes brilhando na penumbra. Alguns detalhes escapavam; outros nasciam ali mesmo, reinventando o passado.
Ao meio-dia, os sobreviventes reuniram-se na praça central. Lina distribuiu pedaços de pão endurecido; Mikal improvisou uma bandeira feita com tecido rasgado dos uniformes do Nexo, agora pintada com círculos azuis do Éter.
Maelis ergueu a bandeira sobre uma pilha de destroços. Não fez discursos — apenas olhou para todos e então para o horizonte incerto além das muralhas partidas.
— Não vamos lembrar tudo — sinalizou com as mãos trêmulas. — Mas podemos escolher o que queremos construir daqui pra frente.
O grupo assentiu em silêncio. Dos escombros de Mirastella, nasceu uma nova promessa: não de restaurar o que fora perdido, mas de criar algo diferente — um futuro sustentado pelo respeito àquilo que se esquece e àquilo que se preserva.
Naquela noite, enquanto as primeiras estrelas se insinuavam por detrás das nuvens desfeitas, Rina sussurrou uma última lembrança para o Éter:
— Enquanto restar alguém para contar uma história… nada estará realmente perdido.
E assim, sob um céu finalmente silencioso, os Silenciados deram início à lenta reinvenção de si mesmos — fragmentados, sim; mas também livres para recomeçar.
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