
Memórias Apagadas
Quando a mente de seu marido é aprisionada em uma IA consciente, Elira deve entrar no mundo digital para salvá-lo. Mas algumas escolhas custam tudo.
Sobre a História
Prólogo: O Eco
PRÓLOGO: O ECO A névoa se movia como criatura viva, enroscando-se ao redor das bordas do fragmento instável. O Guardião Cinzento observava, imóvel, enquanto a pequena ilha — não maior que uma casa — balançava perigosamente sobre o vazio.
Ele não sabia há quanto tempo estava ali. Tempo era conceito que escapava dele, como água entre dedos translúcidos. Podiam ser minutos. Podiam ser horas. Não importava. O fragmento precisava ser estabilizado, ou cairia no Abismo, levando consigo os destroços de algo que um dia fora um lar.
O Guardião estendeu a mão — se é que aquilo podia ser chamado de mão. Cinza. Sempre cinza. Como fumaça solidificada, como sombra que ganhou forma mas não substância. Seus dedos atravessaram a névoa sem perturbá-la, alcançando as linhas de força invisíveis que conectavam o fragmento ao Nexo.
Puxou.
A ilha estremeceu, resistiu, depois cedeu. Deslizou suavemente de volta à sua órbita estável, as rachaduras em sua base selando-se com luz prateada. O Guardião observou por um momento, certificando-se de que o trabalho estava completo, depois se virou para partir.
Foi quando ouviu o choro.
Ele parou. Não porque o som fosse incomum — crianças choravam, era o que faziam. Mas havia algo naquele choro específico que o fazia hesitar. Algo que tocava um lugar dentro dele que deveria estar vazio.
Deveria.
O Guardião se moveu através da névoa, seus pés — se é que tinha pés — não tocando o chão. Flutuava, deslizava, existia entre um passo e outro. A criança estava sentada na borda de outro fragmento, pequena demais para estar sozinha, escura demais contra o cinza ao redor.
Uma menina. Talvez seis anos. Talvez sete. Cabelos escuros caindo sobre o rosto, joelhos arranhados, mãos pequenas apertadas contra o peito.
Perdida.
O Guardião deveria apenas guiá-la de volta. Era o que ele fazia. Estabilizava fragmentos. Guiava os perdidos. Mantinha o equilíbrio. Não sentia. Não questionava.
Mas quando se aproximou e a menina ergueu o rosto — olhos vermelhos de lágrimas, lábio inferior tremendo — algo dentro dele quebrou.
Não era dor. Não exatamente. Era... uma ausência de algo que deveria estar ali. Um vazio onde deveria haver... o quê? Ele não sabia.
"Eu não acho minha mãe," a menina disse, voz pequena, quebradiça.
O Guardião não respondeu. Não porque não quisesse — simplesmente não sabia o que dizer. Palavras eram difíceis. Sempre foram, desde... desde...
Desde quando?
Ele estendeu a mão. A menina hesitou, então a pegou. Seus dedos eram quentes. Quentes. Quando foi a última vez que ele sentira calor?
Não lembrava.
Nunca lembrava.
Eles caminharam — ele flutuando, ela tropeçando — através da névoa. O Guardião sentia a presença dela ao seu lado como âncora, puxando-o de volta para algo que não conseguia nomear. Não era desconfortável. Era... familiar.
Por quê?
A mãe da menina estava três fragmentos adiante, gritando o nome da filha. Quando as viu, correu, ajoelhou-se, puxou a criança para um abraço tão apertado que parecia querer fundi-las em uma só pessoa.
"Obrigada," ela disse, olhando para cima. Seus olhos passaram sobre o Guardião, deslizaram, não fixaram. "Obrigada, eu... eu não sei quem..."
Ela piscou. Confusa. Olhou ao redor.
"Mãe?" a menina perguntou. "Você não vai agradecer o homem cinzento?"
A mãe olhou para onde a filha apontava. Franziu a testa. "Que homem, querida?"
O Guardião já estava se afastando. Era sempre assim. As pessoas olhavam para ele e... esqueciam. Não imediatamente. Mas logo. Como se ele fosse névoa, e névoa não podia ser lembrada.
"Espera!"
A voz da menina. Ele parou — por quê?, não sabia — e olhou para trás.
Ela havia se soltado da mãe e corria em sua direção, pequenos pés batendo contra a pedra. Quando chegou perto, parou, ofegante, e estendeu algo.
Uma flor. Pequena, roxa, com pétalas que brilhavam levemente na luz difusa.
"Pra você," ela disse. "Por me achar."
O Guardião olhou para a flor. Para a menina. De volta para a flor.
Lentamente — tão lentamente — estendeu a mão e pegou. Seus dedos translúcidos envolveram a haste delicada. A flor não murchou. Não desapareceu. Apenas... estava ali.
"Como você se chama?" a menina perguntou.
O Guardião abriu a boca. Fechou. Tentou de novo.
Nada.
Não havia nome. Nunca houve. Ou... houve? Em algum lugar distante, em algum tempo que não conseguia alcançar, havia... algo. Uma palavra. Um som. Uma identidade.
Mas quando tentava lembrar, havia apenas dor.
"Tudo bem," a menina disse, sorrindo. "Eu vou te chamar de Amigo Cinzento."
Ela acenou e correu de volta para a mãe, que já estava esquecendo que a filha havia falado com alguém.
O Guardião ficou ali, segurando a flor, sentindo seu peso impossível em sua mão sem peso.
Algo dentro dele — aquele lugar que deveria estar vazio — doía.
Ele não sabia por quê.
Não sabia por quê.
A névoa o engoliu novamente enquanto ele se afastava, a flor ainda em sua mão. Ele não sabia para onde ia. Apenas... ia. Como sempre fazia. Como sempre faria.
Mas pela primeira vez em... quanto tempo? Décadas? Séculos? Pela primeira vez, ele sentiu algo.
Não conseguia nomear. Não conseguia entender.
Mas estava ali.
Um eco.
Um eco de algo perdido.
Algo que valia mais que o universo inteiro.
Ele não sabia o que era.
Mas sabia — com certeza absoluta, com clareza que cortava através da névoa de sua existência — que havia perdido algo.
Alguém.
Quem?
O vento soprou, carregando sons distantes. Risadas. Vozes. Vida.
E por um instante — apenas um instante — ele ouviu algo diferente.
Uma voz. Pequena. Distante. Como se viesse de muito, muito longe.
"Papai..."
O Guardião congelou.
Olhou ao redor. Névoa. Apenas névoa.
Ninguém.
Mas a voz... a voz...
Ele apertou a flor com tanta força que quase a esmagou. Seu peito — que não respirava, que não batia — doía.
"Papai, você sempre vai estar aqui, né?"
Eco. Apenas eco.
Não era real.
Era?
O Guardião soltou um som — não era palavra, não era grito, apenas... som. Dor condensada em vibração.
Então, lentamente, a dor recuou. Como sempre fazia. Como sempre precisava fazer.
Ele guardou a flor em algum lugar dentro de si — onde, não saberia dizer — e continuou.
Havia fragmentos para estabilizar.
Pessoas para guiar.
Equilíbrio para manter.
Era o que ele fazia.
Era tudo que ele era.
Não era?
A névoa não respondeu.
Nunca respondia.
E o Guardião Cinzento desapareceu entre as ilhas flutuantes, carregando consigo um eco que não conseguia entender.
Um eco de amor.
Um eco de perda.
Um eco de alguém que, em algum lugar, em algum tempo, tinha sido mais do que cinza.
Tinha sido humano.
Tinha tido um nome.
Mas esse nome estava perdido agora.
Perdido no vazio entre memória e esquecimento.
Perdido no lugar onde heróis vão para morrer.
Não em glória.
Mas em silêncio.
[FIM DO PRÓLOGO]
Capítulo 1: O Arquiteto de Pontes
PARTE I: O HOMEM "Antes do cinzento, havia cores."
CAPÍTULO 1: ANTES — O ARQUITETO DE PONTES O sol nascente pintava Luminar de dourado.
Kael parou no meio da ponte que estava construindo — mãos ainda brilhando com os resíduos de magia de construção — e simplesmente olhou.
Dali, suspenso entre duas ilhas, ele podia ver a cidade inteira. Torres que subiam em espirais elegantes, jardins em terraços que cascateavam verde e flor, pontes arqueadas que conectavam tudo como teias de luz solidificada. E além, o céu infinito, onde outras ilhas flutuavam como sonhos esquecidos.
Bonito.
Sempre bonito.
Mesmo depois de trinta e quatro anos vendo o mesmo nascer do sol, ainda tirava seu fôlego.
"Ei, Kael! Vai ficar aí parado o dia todo?"
Ele se virou. Daren, seu parceiro de trabalho, estava na outra ponta da ponte, sorrindo. Homem grande, mãos maiores ainda, coração do tamanho de uma ilha.
"Só admirando a vista," Kael gritou de volta.
"Vista não paga as contas!"
Kael riu. "Não, mas faz valer a pena acordar cedo."
Ele voltou ao trabalho. A ponte estava quase completa — mais um dia, talvez dois, e estaria pronta para uso. Ligaria o distrito residencial ao mercado central, economizando às pessoas a longa caminhada pela ponte antiga que, francamente, já deveria ter sido substituída há anos.
Kael colocou as mãos sobre a pedra inacabada. Fechou os olhos. Sentiu.
A magia de construção não era sobre força bruta. Era sobre compreensão. Você precisava sentir a pedra, entender sua estrutura, conhecer onde ela queria ir. E então, gentilmente — sempre gentilmente — guiá-la.
Luz âmbar brilhou entre seus dedos. A pedra suspirou — ele sempre pensava nisso como suspiro — e começou a se mover. Não derretendo. Não quebrando. Apenas... fluindo. Como água espessa, como mel, até tomar a forma que ele mantinha em sua mente.
Arco elegante. Suporte triplo. Runas de ancoragem nos pontos de tensão.
Belo e funcional.
Sempre.
"Você é bom demais nisso, sabe?" Daren disse, aparecendo ao seu lado. "Faz parecer fácil."
"São vinte anos de prática."
"Eu tenho quinze e ainda faço pontes que parecem... bem, funcionais."
"Funcional é bom."
"Funcional é chato. As suas são arte."
Kael sorriu. "Arte que as pessoas atravessam. Melhor tipo de arte."
Eles trabalharam em silêncio por mais uma hora, o sol subindo, a cidade acordando ao redor deles. Kael amava essas manhãs. O cheiro de pão fresco subindo das padarias. O som de crianças rindo a caminho da escola. O canto distante de aves celestes.
Paz.
Quando a luz do sol atingiu o ângulo certo, Kael parou. "Vou almoçar em casa. Volto em uma hora."
"Manda beijo pra Elira," Daren disse, piscando.
"Mando. E um pra você também."
"Eca."
Kael riu e começou a caminhada de volta. Luminar não era enorme — você podia atravessá-la a pé em meia hora — mas era densa. Ruas estreitas serpenteando entre edifícios, escadarias que subiam e desciam em ângulos impossíveis, pontes pequenas conectando terraços.
Um labirinto.
Mas era seu labirinto.
Ele conhecia cada esquina.
A casa ficava no distrito leste, numa rua tranquila onde árvores flutuantes lançavam sombras dançantes. Pequena — dois andares, jardim frontal do tamanho de um cobertor — mas deles.
Kael abriu a porta.
"Elira? Naia?"
"Cozinha!" a voz de Elira.
Ele encontrou as duas lá. Elira estava na frente do fogão, cabelos negros presos em trança bagunçada, vestido manchado de farinha. Naia estava sentada à mesa, balançando as pernas, desenhando algo em um pedaço de papel.
"Papai!" Naia gritou, pulando da cadeira e correndo para ele.
Kael a pegou no ar, girando, ouvindo sua risada — aquele som que fazia tudo valer a pena. Olhos âmbar iguais aos dele. Sorriso que iluminava salas.
Sua luz.
"Oi, minha pequena construtora. O que você está desenhando?"
"Uma ponte! Olha!" Ela mostrou o papel. Linhas tortas, proporções impossíveis, mas havia algo ali. Intenção. Visão.
"Está linda," ele disse, e estava sendo sincero.
"Mentiroso," Elira disse, mas estava sorrindo. Ela se aproximou, ficou na ponta dos pés, beijou-o. "Mas é um mentiroso doce."
"A ponte está ótima. Só precisa de... ajustes estruturais."
"Papai, você pode me ensinar a fazer pontes de verdade?"
"Um dia. Quando você for mais velha."
"Eu sou velha! Tenho sete anos!"
"Praticamente anciã," Elira disse, voltando para o fogão. "Senta. Almoço está quase pronto."
Eles comeram juntos — sopa de legumes, pão fresco, frutas doces. Conversa fácil. Naia contando sobre a escola (ela estava aprendendo a fazer luz brilhar, mas só conseguia fazer faíscas). Elira mencionando uma encomenda nova (vestido de casamento, tecido que mudava de cor com a luz).
Normal.
Perfeitamente normal.
E Kael amava cada segundo.
Depois do almoço, ele voltou para a ponte. Trabalhou até o sol começar a descer, então arrumou suas ferramentas e foi para casa.
Jantar. Banho para Naia (que reclamou o tempo todo). História antes de dormir (ela escolheu a lenda do Primeiro Fragmento, como sempre).
Kael sentou na beira da cama dela, o pequeno pássaro de madeira que ele havia entalhado para ela no criado-mudo, e começou.
"Há muito, muito tempo, todas as ilhas eram uma só..."
Naia bocejou, olhos já pesados.
"...mas algo aconteceu. Algo terrível. E o mundo se partiu..."
Ela estava quase dormindo quando fez a pergunta.
"Papai?"
"Sim, minha luz?"
"Você sempre vai estar aqui, né?"
Algo no peito de Kael apertou. Ele se inclinou, beijou sua testa.
"Sempre, Naia. Sempre."
"Promete?"
"Prometo."
Ela sorriu, satisfeita, e fechou os olhos.
Kael ficou ali por mais um momento, observando-a dormir. Tão pequena. Tão frágil. O mundo era perigoso — ilhas fragmentando, Abismo sempre espreitando — mas ele faria tudo para mantê-la segura.
Tudo.
Mais tarde, na cama, Elira se enroscou contra ele.
"Você está quieto," ela disse.
"Só pensando."
"Sobre?"
"Sobre como sou sortudo."
Ela riu suavemente. "Sortudo?"
"Tenho você. Tenho Naia. Tenho trabalho que amo. Uma casa. Amigos." Ele a puxou mais perto. "Sou o homem mais sortudo de Luminar."
"Bobo," ela sussurrou. Mas ele sentiu seu sorriso contra seu peito.
Eles ficaram assim, em silêncio, ouvindo os sons noturnos da cidade. Vento suave. Sinos distantes. Paz.
Kael estava quase dormindo quando sentiu.
Um tremor.
Pequeno. Quase imperceptível.
Mas ali.
Ele abriu os olhos. Esperou.
Nada.
Talvez tivesse imaginado.
Talvez...
Outro tremor. Mais forte.
Elira se mexeu. "O que foi isso?"
"Não sei."
Kael se levantou, foi até a janela. Lá fora, Luminar estava quieta. Normal.
Mas algo estava errado.
Ele podia sentir. Na forma como o ar parecia pesado. Na forma como o silêncio era profundo demais.
"Kael?" Elira estava de pé agora, preocupação na voz.
"Está tudo bem," ele disse, mas não tinha certeza se estava.
Voltou para a cama. Puxou-a para perto.
"Está tudo bem," repetiu.
E tentou acreditar.
Mas naquela noite, Kael sonhou.
Sonhou com ilhas caindo.
Sonhou com o céu rachando.
Sonhou com uma voz — distante, desesperada — gritando um nome que ele não conseguia ouvir.
E quando acordou, com o sol nascendo dourado sobre Luminar, ele percebeu duas coisas.
Primeiro: suas mãos estavam tremendo.
Segundo: o tremor não tinha parado.
A ilha estava estremecendo.
E algo lá no fundo — algum instinto primitivo que ele não sabia que tinha — sussurrou:
Está começando.
[FIM DO CAPÍTULO 1]
Capítulo 2: O Guardião Silencioso
CAPÍTULO 2: DEPOIS — O GUARDIÃO SILENCIOSO O fragmento estava morrendo.
O Guardião podia sentir — não com olhos ou ouvidos, mas com algo mais profundo. O Nexo pulsava através dele, mostrando-lhe as linhas de força que mantinham o fragmento ancorado, e elas estavam se desfazendo.
Mais algumas horas e o pedaço de ilha — talvez cem metros de diâmetro, com os restos de três casas e um jardim morto — cairia no Abismo.
Não podia permitir.
Ele se moveu através do vazio entre ilhas. Não voava. Não exatamente. Era mais como... existir em um lugar e depois existir em outro. O espaço entre não importava.
O fragmento apareceu abaixo dele. Pedra cinza, rachada, com vegetação morta agarrada às bordas. Uma das casas estava inclinada perigosamente, metade dela já pendendo sobre o vazio.
Havia pessoas.
Cinco. Não, seis. Viajantes, pelo equipamento. Presos quando o fragmento se separou da ilha principal. Agora amontoados no centro, longe das bordas instáveis, rostos pálidos de medo.
O Guardião desceu. Seus pés — se tinha pés — tocaram a pedra sem fazer som.
Os viajantes não o viram imediatamente. Estavam ocupados demais discutindo.
"— precisamos pular! É a única chance!"
"Pular pra onde? A ilha mais próxima está a duzentos metros!"
"Então vamos morrer aqui?"
"Calem a boca, todos! Deixem-me pensar!"
O Guardião se aproximou. Um deles — mulher, talvez quarenta anos, cabelos grisalhos — olhou em sua direção.
Piscou.
Franziu a testa.
"Vocês estão vendo...?"
Os outros olharam. Seus olhos deslizaram sobre ele, tentando focar, falhando.
"Vendo o quê?"
"Eu... não sei. Pensei que..."
O Guardião não esperou. Não havia tempo para explicações que eles esqueceriam de qualquer forma.
Ele estendeu as mãos — ambas — e puxou.
As linhas de força responderam. Não felizes. Não fáceis. Mas responderam.
O fragmento gemeu. Pedra rangendo, rachadura se alargando. Os viajantes gritaram, agarrando-se uns aos outros.
O Guardião puxou mais forte.
Segure. Apenas... segure.
Luz prateada explodiu de suas mãos, envolvendo o fragmento como teias. As rachaduras pararam de se espalhar. As linhas de força, finas como cabelo, começaram a se reconectar.
Devagar.
Muito devagar.
O Guardião sentiu a pressão. Não física — ele não tinha corpo para sentir pressão física. Mas algo mais profundo. O peso de manter algo que queria cair.
Segure.
Segure.
Segure.
Minutos passaram. Ou horas. Tempo era difícil.
Finalmente, com um estalo final de luz, as linhas se solidificaram.
O fragmento parou de tremer.
O Guardião soltou. Cambaleou — podia cambalear? Aparentemente sim — e quase caiu.
Fraqueza. Rara, mas não impossível.
Ele se endireitou.
Os viajantes estavam olhando ao redor, confusos.
"O que... o que aconteceu?"
"Parou de balançar."
"Como?"
A mulher de cabelos grisalhos olhou diretamente para o Guardião. Seus olhos focaram — por um segundo — e ela viu.
"Você," ela sussurrou. "Você fez isso."
O Guardião não respondeu.
Ela deu um passo à frente. "Obrigada. Nós... nós teríamos morrido se—"
"Mara, com quem você está falando?"
Ela piscou. Olhou ao redor. "Eu... não sei. Eu pensei..."
Seu olhar voltou para onde o Guardião estava.
Deslizou.
Não fixou.
"...pensei que havia alguém."
O Guardião já estava se afastando. Havia outros fragmentos. Sempre havia outros fragmentos.
"Espera!"
A voz de um dos viajantes. Jovem. Homem. Ele estava olhando na direção do Guardião, olhos semicerrados.
"Eu posso... quase ver você. Quem é você?"
O Guardião parou.
Virou-se.
Olhou para o jovem.
Abriu a boca.
Nenhum som saiu.
Tentou de novo.
Quem sou eu?
A pergunta ecoou em sua mente, mas não encontrou resposta.
Quem... sou... eu?
Não sabia.
Nunca soube.
Ou... soube?
Dor. Súbita. Aguda.
Um flash de algo. Não imagem. Não memória completa. Apenas... sensação.
Calor. Risada. Uma voz pequena dizendo—
Desapareceu.
O Guardião apertou os punhos — podia apertar? Sim, aparentemente — e a dor física o atravessou.
Não.
Não.
Não podia lembrar.
Lembrar doía.
"Ei, você está bem?"
O jovem estava mais perto agora. Preocupação genuína no rosto.
O Guardião recuou. Balançou a cabeça — tinha cabeça para balançar? Devia ter.
Então desapareceu.
Não gradualmente. Não se afastando.
Apenas... deixou de estar ali.
Ele reapareceu três ilhas adiante, em um ponto de observação que visitava às vezes. Não sabia por quê. Apenas... sentia que deveria.
O vento soprava aqui. Ele não sentia o vento — não realmente — mas podia ver. Névoa se movendo. Folhas caindo de árvores distantes.
Bonito.
Ele se perguntou se já tinha achado coisas bonitas antes.
Antes de quê?
Não sabia.
Olhou para suas mãos. Cinza. Translúcidas. Podia ver através delas se olhasse com atenção suficiente.
Não eram mãos reais.
Mas eram as únicas que tinha.
Ele as virou, estudando-as. Tentando lembrar se já tinham sido diferentes.
Eram?
Outro flash. Mais forte dessa vez.
Mãos. Suas mãos. Mas não cinzas.
Morenas. Sólidas. Calos nos dedos. Manchas de pedra.
Segurando... algo. Algo pequeno. Quente.
Uma mão menor. Criança.
"Papai, você sempre vai estar aqui, né?"
O Guardião gritou.
Não fez som — nunca fazia — mas a dor era real.
Ele caiu de joelhos — tinha joelhos — e apertou a cabeça — tinha cabeça — e tentou fazer parar.
Para. Para. Para.
A memória recuou. Como sempre fazia.
Deixando apenas o eco.
E a dor.
O Guardião ficou ali, tremendo — podia tremer? — por tempo indeterminado.
Quando finalmente se levantou, havia uma coisa que ele sabia com certeza.
Ele tinha perdido algo.
Algo importante.
Mais importante que as ilhas. Mais importante que o Nexo. Mais importante que sua própria existência.
Mas não sabia o quê.
E tentar lembrar...
Tentou lembrar doía.
Então ele não tentaria.
Não podia.
Havia trabalho a fazer.
Fragmentos para estabilizar.
Pessoas para salvar.
Equilíbrio para manter.
Era o que ele era.
Não era?
O vento não respondeu.
E o Guardião Cinzento desapareceu novamente nas névoas, carregando consigo uma dor que não conseguia nomear.
E uma pergunta que nunca seria respondida.
Quem eu era?
[FIM DO CAPÍTULO 2]
Capítulo 3: Os Primeiros Sinais
CAPÍTULO 3: ANTES — OS PRIMEIROS SINAIS Os tremores não pararam.
Três dias. Três dias desde aquela primeira noite, e Luminar estava tremendo.
Não constantemente. Não forte o suficiente para derrubar edifícios. Mas estava ali. Um estremecimento sutil sob os pés. Um ranger ocasional de pedra. O tipo de coisa que fazia você parar no meio de uma frase e olhar ao redor, coração acelerado.
Kael estava na ponte quando o quarto tremor do dia aconteceu.
Ele congelou, mãos ainda sobre a pedra que estava moldando. Sentiu através da magia — a ilha inteira vibrando. Como corda de instrumento tocada por mão invisível.
"De novo," Daren disse, voz tensa. Ele estava do outro lado, segurando uma viga de suporte. "Kael, isso não é normal."
"Eu sei."
"Deveríamos parar. Voltar quando—"
"Quando o quê? Quando parar?" Kael balançou a cabeça. "Não vai parar, Daren. Seja lá o que for, está piorando."
"Exatamente. Então por que estamos aqui em cima, em uma ponte inacabada, quando a ilha está tendo convulsões?"
Boa pergunta.
Kael olhou para baixo. Trinta metros de queda até a próxima ilha. Não mortal — não com magia de levitação — mas não exatamente seguro.
"Mais uma hora," ele disse. "Só preciso terminar as ancoragens e—"
CRACK.
O som veio de baixo. Alto. Errado.
Ambos congelaram.
"Isso veio da base," Daren sussurrou. "Kael, isso veio da base da ilha."
Outro tremor. Mais forte. A ponte balançou.
"Descendo. Agora." Kael largou suas ferramentas e correu.
Eles desceram as escadas de acesso em tempo recorde, pés batendo em pedra, corações batendo mais rápido. Quando chegaram ao nível da rua, Kael viu que não eram os únicos preocupados.
Pessoas estavam saindo de casas, lojas, escritórios. Olhando ao redor. Sussurrando. Alguns apontando para o céu.
Não. Não o céu.
Outras ilhas.
Kael seguiu os olhares. Seu estômago caiu.
No horizonte, talvez a três quilômetros de distância, uma das ilhas menores — não maior que um quarteirão — estava inclinando.
Devagar. Tão devagar que você quase não percebia se não olhasse fixamente.
Mas estava. Inclinando. Como navio afundando em mar invisível.
"Deuses," Daren sussurrou. "Ela vai..."
Eles observaram em silêncio horrorizado.
A ilha inclinou mais. Mais. Edifícios deslizando. Árvores caindo. E então—
Caiu.
Não explodiu. Não desapareceu. Apenas... soltou-se. Como fruta podre caindo de galho.
E caiu.
Para baixo.
Para o Abismo.
Kael não conseguia respirar. Não conseguia se mover. Apenas observava enquanto a ilha — pedra sólida, terra real, lar de alguém — desaparecia na névoa abaixo.
Silêncio.
Então, ao redor, as pessoas começaram a gritar.
Duas horas depois, Kael estava no salão do conselho.
Não porque fosse membro — ele era apenas um construtor. Mas porque metade da cidade estava lá, empacotada no grande salão circular, todos falando ao mesmo tempo.
"— precisa nos dizer o que está acontecendo!"
"— meus filhos estão apavorados!"
"— a ilha de Verana caiu! Caiu! Quantas pessoas—"
"— não é seguro, precisamos evacuar—"
"— evacuar pra onde? As outras ilhas estão tão instáveis quanto—"
"SILÊNCIO!"
A voz trovejou através do salão. Magicamente amplificada. Todos se viraram.
Conselheira Mira estava de pé no centro elevado, mãos levantadas. Mulher de sessenta anos, cabelos brancos presos em coque severo, olhos que já tinham visto três gerações nascerem.
"Silêncio," ela repetiu, mais suave. "Eu sei que estão assustados. Todos estamos. Mas pânico não ajuda ninguém."
"Então nos diga o que ajuda!" alguém gritou. "Nos diga o que está acontecendo!"
Mira hesitou. Apenas um segundo. Mas Kael viu.
Ela não sabia.
"Nossos magos estão investigando," ela disse finalmente. "Acreditamos que seja uma instabilidade no Nexo. Temporária. As ilhas passaram por tremores antes—"
"Não assim!" Outro grito. "Nunca assim! Ilhas estão caindo, Mira!"
"Uma ilha caiu. Verana era pequena, mal ancorada—"
"E a próxima? E Luminar?"
Silêncio. Pesado. Sufocante.
Mira olhou ao redor do salão. Seu olhar pousou em Kael por um momento. Ele viu reconhecimento ali. E algo mais.
Medo.
"Não sabemos," ela disse finalmente. Voz baixa. Honesta. "Não sabemos o que está causando isso. Não sabemos se vai parar. Mas estamos fazendo tudo que podemos para—"
Outro tremor.
Mais forte que todos os anteriores.
O salão balançou. Pessoas gritaram, agarrando-se umas às outras, às paredes, a qualquer coisa. Rachaduras finas apareceram no teto. Pó caindo.
Kael se abaixou, puxando Daren com ele. Esperou.
Cinco segundos. Dez. Quinze.
Parou.
Lentamente, as pessoas se levantaram. Olhando ao redor. Verificando ferimentos.
Nenhum. Apenas sustos.
Mas quando Kael olhou para Mira, viu que ela estava pálida. Mãos tremendo.
"Sessão encerrada," ela disse, voz quebradiça. "Voltem para casa. Fiquem com suas famílias. Vamos... vamos informá-los quando soubermos mais."
As pessoas começaram a sair. Devagar. Ninguém correndo, mas ninguém demorando.
Kael estava quase na porta quando ouviu seu nome.
"Kael. Um momento."
Ele se virou. Mira estava descendo do centro elevado, caminhando em sua direção.
"Conselheira."
"Você é um dos melhores construtores que temos," ela disse sem preâmbulo. "Preciso que faça algo."
"Qualquer coisa."
"Verifique as âncoras. As fundações. Especialmente nos distritos mais antigos." Ela baixou a voz. "Se Luminar vai... se vai acontecer o que aconteceu com Verana, precisamos saber antes."
Kael sentiu frio no estômago. "Você acha que vai acontecer."
"Eu acho," ela disse calmamente, "que precisamos estar preparados."
Kael passou o resto do dia verificando fundações.
Não era trabalho glamoroso. Significava descer aos níveis mais baixos da ilha — túneis estreitos escavados na pedra, úmidos e escuros — e verificar as âncoras mágicas que mantinham Luminar conectada ao Nexo.
Ele levou Daren. Levou outros três construtores. Levou lanternas, ferramentas, e um senso crescente de pavor.
As primeiras âncoras estavam bem. Sólidas. Brilhando com luz estável.
As do distrito leste também. Firmes.
Mas quando chegaram ao distrito sul — o mais antigo, construído há mais de duzentos anos — Kael viu.
Rachaduras.
Não nas âncoras. Nas linhas de força ao redor delas.
Ele se aproximou, colocou a mão sobre a pedra, fechou os olhos. Sentiu.
A magia estava... fraca. Não quebrada. Mas enfraquecida. Como músculo atrofiado.
"Kael?" Daren, atrás dele. "O que você está sentindo?"
"Instabilidade." Ele abriu os olhos. "As linhas estão se desgastando."
"Pode consertar?"
"Posso reforçar. Mas se a causa raiz não for tratada..." Ele não terminou.
Não precisava.
Eles verificaram o resto do distrito sul. Depois o oeste. Depois o norte.
Mesma história. Em todo lugar. Rachaduras. Enfraquecimento. Decadência.
Quando finalmente emergiram de volta à superfície, o sol estava se pondo. Kael estava exausto. Sujo. E apavorado.
"Preciso falar com Mira," ele disse.
"Agora?"
"Agora."
Mira o recebeu em seu escritório privado. Pequeno. Funcional. Mapas cobrindo as paredes.
"Fale," ela disse assim que ele entrou.
Kael não perdeu tempo. "As âncoras estão falhando. Não todas. Não ainda. Mas está espalhado. Eu posso reforçar, comprar tempo, mas..."
"Mas não é solução permanente."
"Não."
Mira se sentou. Pareceu envelhecer dez anos em um segundo. "Quanto tempo temos?"
"Não sei. Semanas? Meses? Depende de quão rápido a degradação acelera."
"E se acelerar como em Verana?"
Kael não respondeu.
Mira assentiu, como se ele tivesse confirmado algo. "Então precisamos de um plano de evacuação."
"Para onde? Você mesma disse, as outras ilhas—"
"Não todas. As ilhas maiores, as centrais, têm âncoras mais fortes. Podem aguentar. Por um tempo."
"E depois?"
Silêncio.
"Não sei, Kael." Ela olhou pela janela, para a cidade que estava escurecendo. "Não sei."
Kael chegou em casa tarde.
Elira estava esperando. Ela não disse nada, apenas o puxou para um abraço apertado.
"Ouvi," ela sussurrou. "Sobre Verana. Sobre os tremores."
"Está pior do que parece."
"Eu sei." Ela se afastou, olhou em seus olhos. "Naia está assustada. Ela não entende o que está acontecendo."
"Eu também não."
"Mas você vai descobrir. Você sempre descobre."
Kael queria acreditar nela. Queria dizer que sim, que encontraria uma solução, que tudo ficaria bem.
Mas quando abriu a boca, as palavras não vieram.
Então apenas a puxou de volta para o abraço.
E tentou não pensar no som que a ilha de Verana fez quando caiu.
Silêncio.
Apenas silêncio.
Naquela noite, Kael não dormiu.
Ficou deitado, ouvindo Elira respirar. Ouvindo Naia se mexer no quarto ao lado. Ouvindo a casa ranger com cada pequeno tremor.
E pensou.
Se Luminar cair...
Não. Quando Luminar cair.
Porque agora ele sabia. Não era questão de se. Era questão de quando.
Ele tinha semanas. Talvez meses se tivesse sorte.
Para fazer o quê? Salvar todos? Impossível. Não havia ilhas suficientes. Não havia tempo.
Mas talvez... talvez pudesse salvar alguns.
Sua família. Amigos. Quem mais conseguisse.
Seria suficiente?
Teria que ser.
Porque a alternativa era...
Outro tremor. Mais forte.
Kael fechou os olhos.
E pela primeira vez em sua vida, rezou.
Para quem, não sabia.
Mas rezou mesmo assim.
Por favor. Só um pouco mais de tempo.
Só isso.
Por favor.
[FIM DO CAPÍTULO 3]
Capítulo 4: A Menina Perdida
CAPÍTULO 4: DEPOIS — A MENINA PERDIDA O Guardião estava estabilizando um fragmento quando a sentiu.
Não viu. Não ouviu. Sentiu.
Uma presença. Pequena. Familiar de forma que não conseguia explicar.
Ele parou, mãos ainda brilhando com luz prateada, e olhou ao redor.
Névoa. Apenas névoa.
Mas a sensação não ia embora.
Ele terminou o trabalho rapidamente — as linhas de força se solidificando com um snap final — e então se moveu.
Não na direção de onde veio. Na direção da sensação.
Levou três saltos entre fragmentos para encontrá-la.
Uma menina. Talvez oito anos. Talvez nove. Sentada na borda de uma ilha pequena — não maior que uma casa — balançando as pernas sobre o vazio.
Não chorando. Apenas... sentada.
O Guardião se aproximou. Devagar. Não queria assustá-la.
Mas quando chegou a três metros de distância, ela falou sem se virar.
"Eu sei que você está aí."
Ele parou.
Ela olhou por cima do ombro. Olhos escuros. Cabelos mais escuros ainda. Rosto sujo de pó e lágrimas secas.
E ela viu ele.
Realmente viu. Olhos focando. Não deslizando.
"Oi," ela disse.
O Guardião não respondeu. Não conseguia.
"Você é o Guardião, né? Mamãe falava de você. Disse que você salva pessoas."
Ele assentiu. Devagar.
"Pode me salvar?"
Outro aceno.
"Pode salvar minha mãe?"
Ele hesitou.
A menina viu. Seu rosto caiu. "Ela... ela não vai voltar, né?"
O Guardião não sabia o que dizer. Não sabia como dizer.
Então apenas ficou ali.
A menina virou de volta para o vazio. "Nós estávamos na ilha grande. A que tinha o mercado. Mas ela começou a rachar e todo mundo correu e eu segurei na mão da mamãe mas tinha muita gente e ela me soltou e disse pra correr e eu corri mas quando olhei pra trás ela não estava mais lá e a ilha estava caindo e—"
Sua voz quebrou.
O Guardião se moveu. Não pensou. Apenas se moveu.
Sentou ao lado dela. Ou algo próximo de sentar. Sua forma era inconsistente às vezes.
A menina olhou para ele. "Você não fala?"
Ele balançou a cabeça.
"Tudo bem. Eu falo por nós dois." Ela tentou sorrir. Não funcionou. "Eu sou Lira."
Lira.
O nome ecoou em sua mente. Não era familiar. Mas algo nele...
"Papai, você sempre vai estar aqui, né?"
Dor. Súbita. Aguda.
O Guardião apertou os olhos — tinha olhos? Sim, aparentemente — e esperou passar.
"Você está bem?" Lira perguntou, preocupação genuína na voz.
Ele assentiu. Mentira.
"Meu pai também não falava muito," ela disse, voltando a olhar para o vazio. "Ele era construtor. Fazia pontes. As mais bonitas que você já viu."
Algo no peito do Guardião apertou.
"Ele morreu quando eu tinha cinco anos. Uma ilha caiu. Ele estava tentando salvar pessoas e... e não conseguiu sair a tempo."
Não.
"Mamãe disse que ele era herói. Que ele salvou dezenas de pessoas. Mas eu só queria que ele tivesse salvado a si mesmo."
Não. Não. Não.
"Você acha que ele virou um Guardião também? Como você?"
O Guardião não conseguia respirar. Não precisava respirar, mas ainda assim sentia como se estivesse sufocando.
"Mamãe disse que os Guardiões são pessoas que deram tudo para salvar outros. Que eles ficam pra sempre, protegendo. É verdade?"
Ele não sabia. Não lembrava.
Mas algo lá no fundo — algo enterrado sob camadas de névoa e esquecimento — gritou.
Sim. Sim. É verdade. Você deu tudo. Você perdeu tudo. E agora você está preso aqui, nem vivo nem morto, apenas EXISTINDO, e você nem lembra POR QUÊ—
"Ei." A voz de Lira, suave. "Você está chorando."
Ele levou a mão ao rosto. Seus dedos voltaram úmidos.
Não. Não úmidos. Brilhando. Luz prateada escorrendo como lágrimas.
Ele encarou suas mãos. Depois Lira.
Ela sorriu. Triste, mas real. "Tudo bem. Eu também choro às vezes."
O Guardião não sabia o que fazer. Não sabia o que sentir.
Então apenas ficou ali, com essa menina que podia vê-lo, enquanto luz prateada escorria de seus olhos.
E pela primeira vez em... quanto tempo?
Ele não se sentiu sozinho.
Eles ficaram assim por um tempo. Não falando. Apenas... existindo juntos.
Finalmente, Lira se levantou. "Você pode me levar de volta? Pra uma das ilhas grandes?"
O Guardião assentiu. Ficou de pé — ou o equivalente.
"Posso segurar sua mão?"
Ele hesitou. Depois estendeu a mão.
Lira a pegou. Seus dedos eram quentes. Sólidos. Reais de forma que ele não era.
"Obrigada," ela disse. "Por ficar comigo. Por não me deixar sozinha."
Algo dentro dele quebrou.
Não dolorosamente. Não exatamente.
Mas quebrou.
E pela primeira vez, ele sentiu.
Não memória. Não pensamento.
Apenas... sentimento.
Tristeza. Profunda. Esmagadora.
E algo mais.
Amor.
Amor por essa menina que ele não conhecia. Amor por todas as pessoas que ele salvava. Amor por um mundo que ele não lembrava.
Amor por alguém que ele tinha perdido.
Quem?
Não sabia.
Mas sabia que tinha amado.
E ainda amava.
Mesmo sem lembrar.
Ele levou Lira para a ilha mais próxima. Grande. Estável. Cheia de refugiados.
Ela soltou sua mão na borda. "Você vai ficar?"
Ele balançou a cabeça.
"Tem mais pessoas pra salvar?"
Aceno.
"Então vá. Mas..." Ela hesitou. "Você pode voltar às vezes? Só pra visitar?"
Ele não sabia se podia prometer isso. Não sabia se deveria.
Mas assentiu mesmo assim.
Lira sorriu. Real dessa vez. "Obrigada, Guardião."
Ela se virou para ir embora.
"Kael."
A voz saiu antes que ele pudesse parar. Rouca. Quebrada. Como se não tivesse sido usada em anos.
Mas saiu.
Lira parou. Virou-se. Olhos arregalados.
"O quê?"
"Meu... nome." As palavras doíam. Fisicamente. Mas ele as forçou para fora. "Era... Kael."
Lágrimas brotaram nos olhos de Lira. "Kael. É bonito."
"Obrigado... por... lembrar-me."
"Como eu poderia esquecer?" Ela correu de volta, jogou os braços ao redor dele.
Ele não tinha substância suficiente para abraço real. Mas sentiu.
Calor.
Vida.
Conexão.
"Eu vou lembrar," ela sussurrou. "Prometo. Vou lembrar de você."
E então ela foi embora, correndo para a multidão de refugiados, gritando por alguém que conhecia.
O Guardião — Kael — ficou ali.
Olhando para suas mãos.
Repetindo o nome em sua mente.
Kael.
Kael.
Kael.
Não era muito. Apenas um nome.
Mas era seu.
E pela primeira vez desde que podia lembrar...
Ele não estava perdido.
[FIM DO CAPÍTULO 4]
Capítulo 5: O Colapso Começa
CAPÍTULO 5: ANTES — O COLAPSO COMEÇA Levou duas semanas.
Duas semanas desde a queda de Verana.
Duas semanas de tremores cada vez mais frequentes.
Duas semanas de medo.
E então, em uma manhã clara de outono, quando o sol nascia dourado sobre as ilhas flutuantes...
Luminar começou a morrer.
Kael estava no distrito sul quando aconteceu.
Não por acaso. Ele passava a maior parte dos dias lá agora, reforçando âncoras, estabilizando fundações, fazendo tudo que podia para segurar a ilha.
Era trabalho desesperado. Ele sabia disso.
Como tentar segurar água com as mãos.
Mas era melhor que nada.
Daren estava com ele. Assim como uma equipe de seis outros construtores. Todos voluntários. Todos sabendo que estavam comprando tempo, não salvação.
"Última âncora deste setor," Daren disse, limpando suor da testa. "Depois vamos para o leste?"
"Depois vamos para casa," Kael respondeu. "Precisamos descansar. Estamos trabalhando há—"
O tremor o cortou.
Não como os outros.
Pior.
Muito pior.
O chão sacudiu. Violentamente. Como animal tentando se livrar de parasitas.
Kael foi jogado de joelhos. Ouviu gritos ao redor. Vidro quebrando. Pedra rachando.
E então—
BOOOOM.
O som veio de cima. Do centro da ilha.
Kael olhou para cima, e seu coração parou.
Uma rachadura.
Não pequena. Não superficial.
Uma rachadura massiva, serpenteando através dos edifícios, das ruas, da própria pedra da ilha.
E estava crescendo.
"CORRAM!" ele gritou. "SAIAM DAQUI! AGORA!"
Não precisou repetir.
O caos foi instantâneo.
Pessoas correndo. Gritando. Pais agarrando filhos. Velhos sendo carregados. Todos tentando chegar às pontes, aos portais de transporte, a qualquer saída.
Kael corria contra a multidão.
"KAEL!" Daren gritou atrás dele. "PRA ONDE VOCÊ VAI?"
"PRA CASA!"
"A CIDADE ESTÁ CAINDO!"
"EU SEI!"
Ele não parou.
Sua casa ficava no distrito norte. A três quilômetros de distância. Através de ruas que estavam desmoronando.
Não importava.
Elira estava lá.
Naia estava lá.
Ele tinha que chegar até elas.
O distrito central estava pior.
A rachadura tinha se alargado. Kael podia ver através dela — através da ilha — para o Abismo abaixo.
Edifícios estavam desabando. Pontes se partindo. Pedaços inteiros da ilha se desprendendo e caindo.
Ele usou magia. Levitação. Saltos de força. Qualquer coisa para se mover mais rápido.
Passou por uma família presa sob escombros. Parou. Usou magia para levantar as vigas. A mãe saiu arrastando duas crianças.
"Obrigada! Obrigada! Deus te aben—"
"CORRAM!" ele gritou, e já estava se movendo de novo.
Passou por um idoso caído. Ajudou-o a levantar. Apontou para a ponte mais próxima.
"Lá! Vá! Rápido!"
Passou por—
Elira.
Ela estava correndo na direção oposta, Naia nos braços, olhos desesperados varrendo a multidão.
"KAEL!"
Ele nunca tinha ouvido seu nome gritado com tanto alívio.
Correu até ela. Puxou ambas para um abraço apertado.
"Vocês estão bem? Estão machucadas?"
"Estamos bem!" Elira estava chorando. "Eu pensei— eu pensei que você estava no sul e—"
"Estou aqui. Estou aqui. Vamos sair daqui."
"A ponte leste colapsou," ela disse rapidamente. "A oeste está lotada. Não conseguimos passar."
Kael olhou ao redor. Pensou rápido.
"A ponte norte. A que eu estava construindo. Ainda está de pé?"
"Não sei! Estava inacabada—"
"É nossa melhor chance. Vamos."
A ponte norte estava de pé.
Mal.
Kael podia ver de longe — faltavam seções. Cabos soltos. Âncoras tremendo.
Mas estava lá.
E havia pessoas atravessando. Lentamente. Cuidadosamente. Segurando-se nos cabos.
"Kael..." Elira sussurrou, vendo a ponte. "Não vai aguentar. Tem gente demais."
"Vai ter que aguentar."
Eles correram para a entrada. Kael colocou Naia em suas costas, amarrando-a com seu cinto.
"Segure firme, pequena. Não solte, ok?"
"Tá com medo, papai," ela choramingou.
"Eu sei. Eu também. Mas vamos ficar bem. Prometo."
Mentira. Mas que outra coisa poderia dizer?
Atravessar foi pesadelo.
A ponte balançava a cada passo. Rangia. Gemia.
Pessoas à frente deles estavam congeladas de medo. Algumas chorando. Outras rezando.
Kael mantinha uma mão em Elira, outra nos cabos, magia fluindo constantemente para estabilizar a estrutura.
Não era suficiente. Ele sentia a ponte se desgastando sob o peso.
Só mais um pouco. Só preciso aguentar mais um pouco.
Estavam na metade quando ouviram o CRACK.
Kael olhou para trás.
A rachadura tinha alcançado a base da ponte.
Luminar estava se partindo.
"CORRAM!" alguém gritou. "A ILHA VAI CAIR!"
Pânico.
Pessoas empurrando. Tropeçando. Caindo.
Kael viu um homem ser empurrado para fora da ponte. Caindo. Gritando.
Desaparecendo na névoa.
"NÃO EMPURREM!" ele gritou. "SE ACALMEM! TODOS VÃO PASSAR SE—"
Outro CRACK.
A ponte tremeu.
Um dos cabos principais se partiu, chicoteando pelo ar.
A seção à frente deles desabou.
Gritos. Pessoas caindo. Desaparecendo.
"KAEL!" Elira agarrou seu braço. "O QUE FAZEMOS?"
Ele olhou à frente. Depois atrás.
Eles estavam presos.
Não podiam voltar — Luminar estava desmoronando.
Não podiam avançar — a ponte estava quebrada.
E então ele viu.
A outra ilha. A que a ponte deveria conectar.
A apenas dez metros de distância.
Mas com um abismo entre eles.
"Elira," ele disse, voz estranhamente calma. "Você confia em mim?"
"O quê? Kael, o que você—"
"Você confia em mim?"
Ela olhou em seus olhos. Viu algo lá. Algo final.
"Sim. Sempre."
"Então segure firme."
Ele se virou para as pessoas atrás deles. Talvez vinte. Talvez trinta.
"ESCUTEM!" sua voz trovejou, magicamente amplificada. "VOU FAZER UMA PONTE! TEMPORÁRIA! QUANDO EU DISSER, CORRAM! NÃO PAREM! NÃO OLHEM PRA TRÁS! APENAS CORRAM!"
"Como você vai—"
"CONFIEM EM MIM!"
Ele não esperou resposta.
Fechou os olhos. Respirou fundo.
E puxou.
Magia não era infinita.
Todo mago tinha um limite. Um ponto além do qual não podiam ir sem se queimar.
Kael tinha alcançado esse limite várias vezes em sua vida.
Sabia como era.
Dor. Exaustão. O sentimento de sua própria essência sendo consumida.
Mas nunca tinha ido além.
Até agora.
Ele puxou mais fundo do que jamais tinha puxado. Mais do que sabia que tinha.
Sentiu algo dentro dele se rasgar.
Não importava.
Luz explodiu de suas mãos. Prateada. Brilhante. Viva.
E entre a ponte quebrada e a outra ilha, pedra começou a se formar.
Não pedra real. Pedra feita de magia pura. Sólida apenas enquanto ele a mantivesse.
Dez metros. Ele precisava de dez metros.
Cinco. Seis. Sete.
Sua visão estava ficando turva. Sangue escorrendo de seu nariz.
Oito. Nove.
Dez.
"AGORA!" ele gritou. "CORRAM!"
As pessoas correram.
Elira primeiro, puxando Naia. Depois os outros. Tropeçando, deslizando, mas correndo.
Kael segurava. Dentes cerrados. Cada segundo era agonia.
Só mais um pouco. Só até todos passarem.
Ele viu Elira alcançar o outro lado. Viu Naia ser baixada, segura.
Viu os outros chegando. Um por um.
Quinze. Vinte. Vinte e cinco.
Trinta.
Todos seguros.
Exceto ele.
Ele estava sozinho na ponte quebrada. Segurando a passagem mágica. Segurando enquanto Luminar desmoronava atrás dele.
"KAEL!" Elira gritou do outro lado. "VENHA!"
Ele queria.
Mas se soltasse a magia, a ponte desapareceria.
E havia mais pessoas atrás dele. Ele podia ouvir. Gritos. Passos.
Mais vindo.
Só mais um pouco.
"KAEL, POR FAVOR!"
Ele olhou para ela. Para Naia ao seu lado, chorando.
E sorriu.
"Eu amo vocês," ele disse.
Voz baixa. Mas ele sabia que ela ouviria.
"Não," Elira sussurrou, olhos arregalados. "Não. NÃO!"
"Cuide dela. Cuide de nossa filha."
"KAEL!"
Mais pessoas correram através da ponte. Dez. Quinze. Vinte.
Ele segurava.
Sua visão estava preta nas bordas. Ele podia sentir sua própria vida sendo drenada.
Mas segurava.
Porque era o que ele fazia.
Construía pontes.
Conectava pessoas.
Salvava vidas.
Mesmo que custasse a sua.
As últimas pessoas passaram. Uma velha, mancando. Duas crianças, sozinhas, apavoradas.
Ele as viu alcançar o outro lado.
E soltou.
A ponte mágica desapareceu.
Kael caiu de joelhos.
Atrás dele, Luminar rugiu.
A rachadura tinha se alargado. A ilha estava se partindo ao meio.
Ele olhou para cima. Para Elira.
Ela estava gritando. Tentando correr de volta. Pessoas a segurando.
Naia estava chorando, braços estendidos.
"Papai! PAPAI!"
Ele levantou a mão. Acenou.
Uma última vez.
E então—
Luminar caiu.
Não devagar. Não gradualmente.
Desabou.
Como vidro se estilhaçando. Como mundo se acabando.
E Kael caiu com ela.
Ele não gritou.
Apenas fechou os olhos.
E pensou em Elira.
Em Naia.
Em todas as pessoas que tinha salvado.
Valeu a pena.
Valeu—
Impacto.
Não com o chão. Não havia chão no Abismo.
Com algo mais.
Algo antigo. Algo vasto.
O Nexo.
Ele sentiu. Não com mãos. Não com corpo.
Com alma.
E o Nexo sentiu ele.
— construtor —
— salvador —
— sacrifício —
— você deu tudo —
— deixe-nos dar algo de volta —
Dor. Indescritível. Como ser desmontado e remontado ao mesmo tempo.
Ele tentou gritar. Não tinha voz.
Tentou se mover. Não tinha corpo.
Tentou lembrar.
E esqueceu.
Seu nome. Seu rosto. Sua vida.
Tudo se dissolvendo na luz prateada.
— não —
— por favor —
— não quero esquecer —
— ELIRA —
— NAIA —
Mas o Nexo era implacável.
Pegou suas memórias. Suas emoções. Sua humanidade.
E deu algo de volta.
Propósito.
— você salvará —
— você protegerá —
— você guardará —
— para sempre —
Não. Ele não queria para sempre.
Queria viver.
Mas já era tarde.
A transformação estava completa.
Kael, o construtor de pontes, o marido, o pai...
Desapareceu.
E o Guardião nasceu.
Quando abriu os olhos — tinha olhos? — tudo estava diferente.
As cores eram mais brilhantes. Os sons mais claros. Ele podia sentir cada ilha, cada fragmento, cada linha de força no Nexo.
Mas não conseguia lembrar seu nome.
Olhou para suas mãos. Prateadas. Translúcidas. Vazias.
Quem sou eu?
Não sabia.
Por que estou aqui?
Não sabia.
Mas quando viu um fragmento de ilha começando a cair, com uma família presa nele...
Ele soube o que fazer.
Saltou. Voou. Alcançou.
Salvou.
Porque era o que ele fazia.
Mesmo sem lembrar por quê.
[FIM DO CAPÍTULO 5]
Capítulo 6: Fragmentos de Memória
CAPÍTULO 6: DEPOIS — FRAGMENTOS DE MEMÓRIA Kael — ele tinha um nome agora, graças a Lira — passou os próximos dias em estado estranho.
Não confuso. Não exatamente.
Mas consciente de forma que não tinha sido antes.
Cada vez que salvava alguém, cada vez que estabilizava um fragmento, ele sentia algo.
Não memória completa. Mas ecos.
— uma mão segurando a sua —
— risada de criança —
— cheiro de tinta fresca —
— gosto de pão caseiro —
Fragmentos. Pedaços. Momentos sem contexto.
Mas eram seus.
E ele queria mais.
Ele começou a procurar.
Não conscientemente. Não com plano.
Mas seus pés — tinha pés? — o levavam a lugares específicos.
Fragmentos específicos.
Como se algo dentro dele soubesse.
Ele encontrou um pedaço do distrito sul. Metade de uma casa ainda de pé.
Entrou. Olhou ao redor.
Ferramentas. Desenhos. Plantas de pontes.
— isso é meu —
Não. Não dele. Do Guardião.
Mas antes. Quando ele era...
— Kael —
— construtor —
— arquiteto de pontes —
Sim. Sim.
Ele pegou um dos desenhos. Seus dedos passaram através do papel.
Não podia segurá-lo. Não mais.
Mas podia ver.
Uma ponte. Elegante. Conectando duas ilhas.
E no canto, uma assinatura.
Kael Theron.
Theron.
Seu sobrenome. Ele tinha sobrenome.
Algo no peito do Guardião apertou. Não dor. Mas algo próximo.
Saudade.
De algo que ele tinha perdido.
De algo que ele era.
Ele encontrou mais fragmentos.
Uma praça onde costumava almoçar. (Como ele sabia disso?)
Uma biblioteca onde pegava livros. (Ele gostava de ler?)
Uma oficina onde—
Ele parou.
No fundo da oficina, parcialmente enterrado sob escombros, havia algo brilhando.
Não magia. Não luz do Nexo.
Algo mais mundano.
Ele se aproximou. Moveu os escombros com magia.
E encontrou.
Um medalhão.
Pequeno. Simples. Prata com gravura de duas ilhas conectadas por ponte.
Ele o pegou.
Dessa vez, seus dedos seguraram.
Sólidos. Reais.
Como se o objeto tivesse peso suficiente para ancorá-lo à realidade.
Abriu.
Dentro, duas miniaturas.
Uma mulher. Cabelos escuros. Sorriso gentil.
Uma menina. Talvez quatro anos. Rindo.
E de repente—
FLASH.
— "Kael, você está trabalhando de novo? É meia-noite!" —
— "Só mais um desenho, amor. Prometo." —
— "Você sempre diz isso." —
— Risada. Mãos puxando-o da mesa. Beijo. —
— "Vem pra cama. As pontes podem esperar." —
— "Mas—" —
— "Eu não posso." —
FLASH.
— "Papai, olha! Olha o que eu desenhei!" —
— Papel rabiscado. Linhas tortas. Algo que poderia ser uma ponte. Ou um dragão. —
— "É lindo, Naia." —
— "É uma ponte! Como as suas!" —
— "É a melhor ponte que eu já vi." —
— Risada. Abraço. —
— "Quando eu crescer, vou fazer pontes com você!" —
— "Eu adoraria isso." —
FLASH.
— Tremor. —
— Elira segurando Naia. —
— "Vai ficar tudo bem, pequena. Papai vai consertar." —
— "Papai conserta tudo!" —
— Olhando pela janela. Vendo a rachadura no céu. —
— Sabendo que não podia consertar isso. —
— Não dessa vez. —
Kael voltou ao presente com um grito.
Não de dor. De reconhecimento.
Elira.
Naia.
Minha esposa. Minha filha.
As memórias inundaram. Não todas. Mas o suficiente.
Seu casamento. O nascimento de Naia. Anos de jantar em família, de noites desenhando enquanto Elira lia, de Naia crescendo, de vida.
De amor.
E então—
A queda.
A ponte.
A escolha.
— cuide dela —
— cuide de nossa filha —
Ele tinha escolhido.
Tinha escolhido salvar em vez de viver.
E agora...
Ele olhou para suas mãos. Prateadas. Translúcidas. Mortas.
Agora ele era isso.
Nem vivo nem morto. Apenas existindo. Para sempre.
Guardando. Salvando. Protegendo.
Mas nunca vivendo de novo.
Ele não sabia quanto tempo ficou ali, segurando o medalhão.
Horas? Dias?
O tempo era estranho para ele agora.
Finalmente, ele o fechou. Devagar. Cuidadosamente.
E o guardou.
Onde? Ele não tinha bolsos. Não tinha corpo real.
Mas de alguma forma, o medalhão ficou. Fundindo-se com sua essência. Parte dele agora.
Elira. Naia.
Elas estavam vivas? Tinham sobrevivido?
Ele tinha que saber.
Tinha que encontrá-las.
Ele procurou.
Saltou de fragmento em fragmento, ilha em ilha, procurando.
Procurando cabelos escuros. Sorriso gentil. Risada de criança.
Mas havia tantas pessoas. Tantos refugiados. Tantos rostos.
E ele não podia simplesmente perguntar.
A maioria não podia vê-lo. E os que podiam... tinham seus próprios problemas.
Ele estava começando a perder esperança quando ouviu.
"— Guardião! Ei, Guardião!"
Ele se virou.
Lira.
Ela estava correndo em sua direção, acenando. Maior que quando a viu pela última vez. Talvez dez anos agora? Onze?
Quanto tempo tinha passado?
"Eu sabia que você voltaria!" ela disse, parando na frente dele, sorrindo. "Você prometeu!"
Ele tinha? Não lembrava.
Mas assentiu mesmo assim.
"Eu tenho algo pra te mostrar!" Ela pegou sua mão — sólida, quente, viva — e puxou.
Ele a seguiu.
Lira o levou através da ilha de refugiados. Maior agora. Mais organizada.
Tendas tinham se tornado casas. Caminhos de terra tinham se tornado ruas.
As pessoas estavam reconstruindo.
"Depois que você me salvou," Lira disse enquanto andavam, "eu comecei a perguntar sobre você. Sobre os Guardiões. E descobri algo!"
Ela parou na frente de uma tenda grande. Lona velha mas limpa. Uma placa pendurada na frente:
MEMORIAL DOS CAÍDOS
"Vem," ela disse, puxando-o para dentro.
O interior estava cheio de nomes.
Escritos em tecido, papel, madeira. Pendurados em cordas cruzando o teto.
Centenas. Milhares.
"As pessoas escrevem os nomes de quem perderam," Lira explicou, voz suave. "Para lembrar. Para honrar."
Ela o levou para uma seção específica. Apontou.
Kael Theron — Construtor de Pontes — Herói de Luminar
Abaixo, em letra menor:
Salvou 47 vidas na ponte norte durante o colapso. Sacrificou-se para que outros pudessem viver. Sobrevivido por esposa Elira e filha Naia.
Kael não conseguia respirar.
Sobrevivido.
Elas estavam vivas.
"Eu achei isso há alguns meses," Lira disse. "E lembrei. Você disse que seu nome era Kael. E eu pensei... talvez..."
Ela olhou para ele. "É você, né? Você é ele."
Ele não conseguia falar. Apenas assentiu.
"Eu pensei." Ela sorriu. Triste mas real. "Eu sinto muito. Pelo que aconteceu. Pelo que você perdeu."
Eu também.
"Mas você deveria saber," ela continuou, "que sua família está bem. Elira e Naia. Elas vivem aqui. Nesta ilha."
O coração de Kael — tinha coração? — parou.
"Você quer que eu te leve até elas?"
Sim.
Não.
Sim.
O que ele diria? Como poderia explicar?
Mas ele tinha que ver. Tinha que saber que estavam bem.
Ele assentiu.
Lira pegou sua mão de novo.
"Vem. Elas moram perto."
[FIM DO CAPÍTULO 6]
Capítulo 7: O Reencontro
CAPÍTULO 7: DEPOIS — O REENCONTRO A casa era pequena.
Madeira recuperada. Teto de lona reforçada. Janela com vidro rachado mas funcional.
Como todas as outras casas na ilha de refugiados.
Mas para Kael, era a coisa mais importante do mundo.
Porque elas estavam lá dentro.
Lira parou a alguns metros da porta.
"Você quer que eu vá com você?" ela perguntou, voz gentil.
Kael balançou a cabeça.
Não. Isso é algo que preciso fazer sozinho.
"Ok." Ela apertou sua mão uma última vez. "Boa sorte, Guardião."
Ela se afastou, deixando-o sozinho.
Kael ficou parado, olhando para a porta.
Tão perto.
Depois de tanto tempo.
Quanto tempo?
Ele não sabia. Meses? Anos? O tempo era fluido para ele agora.
Mas para elas...
Quanto tempo tinham passado sem ele?
Quanto tinham sofrido?
Ele quase foi embora.
Quase decidiu que era melhor deixá-las em paz.
Que ver um fantasma do homem que amavam seria cruel.
Mas então ouviu.
Risada.
Risada de criança.
E seus pés se moveram sozinhos.
Ele não bateu.
Não podia. Seus dedos passavam através da madeira.
Então simplesmente... atravessou.
Como fantasma.
Porque era o que ele era.
O interior era simples. Uma sala combinada com cozinha. Duas camas no canto. Mesa pequena. Cadeiras velhas mas limpas.
E lá—
Elira.
Ela estava na cozinha, mexendo algo em uma panela. Cabelos mais curtos agora. Linhas de preocupação ao redor dos olhos que não estavam lá antes.
Mas ainda era ela.
Ainda tinha aquele jeito de morder o lábio quando concentrada.
Ainda cantarolava baixinho enquanto cozinhava.
Ainda era a mulher que ele amava.
E na mesa—
Naia.
Não mais uma criança de quatro anos.
Talvez dez agora? Onze?
Cabelos longos como da mãe. Olhos como os dele.
Desenhando algo em papel amarelado.
Pontes.
Ela estava desenhando pontes.
Algo no peito de Kael partiu.
"Naia, jantar em cinco minutos," Elira disse.
"Tá bom, mãe." Naia não levantou os olhos. "Só preciso terminar essa seção."
"Você sempre diz isso."
"Eu aprendi com o melhor."
Elira parou. Por um momento, só isso.
Então continuou mexendo a panela, voz mais baixa.
"Sim. Você aprendeu."
Silêncio.
Não confortável. Não exatamente.
Mas familiar. Praticado.
O silêncio de pessoas que tinham aprendido a viver com ausência.
Kael queria falar.
Queria gritar.
Estou aqui! Estou bem aqui!
Mas não conseguia.
Não porque não tinha voz.
Mas porque não sabia o que dizer.
Elas jantaram em silêncio.
Sopa simples. Pão duro.
Comida de refugiados.
Mas Elira tinha feito o melhor que podia.
Ela sempre fazia.
"Mãe," Naia disse depois de um tempo, "você acha que o Guardião é real?"
Elira olhou para cima. "O quê?"
"O Guardião. As pessoas falam dele. Dizem que ele salva pessoas. Que aparece quando alguém está em perigo."
"É só uma história, Naia."
"Mas e se não for? E se ele for real?"
"Então eu agradeço a ele." Elira pegou a mão de Naia. "Por salvar você. Por nos manter seguras."
"Você acha que ele salvou o papai?"
Elira ficou muito quieta.
"Não sei, querida."
"Eu acho que sim." Naia voltou a comer. "Eu acho que o papai virou Guardião. E agora ele cuida de todo mundo."
Elira fechou os olhos.
"Seria lindo se fosse verdade."
É.
É verdade.
Estou aqui.
BEM AQUI.
Mas elas não podiam ouvi-lo.
Depois do jantar, Naia foi para a cama.
Elira lavou os pratos. Arrumou a casa. Apagou as velas.
Rotina.
Mecânica.
Sobrevivência.
Então ela se sentou na beira de sua cama.
E tirou algo de debaixo do travesseiro.
Um caderno.
Velho. Gasto. Páginas amareladas.
Ela o abriu.
E Kael viu.
Cartas.
Dezenas delas.
Todas endereçadas a—
Meu amor,
Já faz três anos hoje...
Meu amor,
Naia perguntou sobre você de novo hoje. Ela quer saber se você sentiria orgulho dela. Eu disse que sim. Sempre sim.
Ela está desenhando pontes agora. Como você. Ela tem seu talento. Sua paixão.
Eu não sei se isso me deixa feliz ou triste.
Meu amor,
Eu sonhei com você ontem à noite. Você estava na ponte. Sorrindo. Acenando.
Eu tentei alcançar você, mas você estava longe demais.
Eu acordei chorando.
Naia ouviu. Veio para minha cama. Segurou minha mão.
"Tá tudo bem, mãe," ela disse. "Papai está cuidando da gente."
Ela tem tanta certeza.
Eu queria ter.
Meu amor,
Hoje marcou cinco anos.
Cinco anos desde que eu vi seu rosto.
Cinco anos desde que ouvi sua voz.
Cinco anos desde que você me segurou.
As pessoas dizem que fica mais fácil.
Elas mentem.
Elira fechou o caderno.
Devagar.
Cuidadosamente.
E chorou.
Silenciosamente.
Como tinha aprendido a fazer.
Para não acordar Naia.
Para não preocupá-la.
Para não desmoronar.
Kael se ajoelhou ao lado dela.
Tentou tocar seu rosto.
Seus dedos passaram através.
Elira.
Por favor.
Me veja.
Mas ela não viu.
Apenas chorou.
E ele não podia fazer nada.
Ele ficou a noite toda.
Assistindo-as dormir.
Elira, enrolada em posição fetal, segurando o travesseiro como se fosse pessoa.
Naia, espalhada na cama, desenhos caídos ao seu lado.
Sua família.
Vivas.
Seguras.
Mas sem ele.
E ele percebeu.
Percebeu com clareza dolorosa.
Ele tinha salvado 47 pessoas naquela ponte.
Mas tinha condenado duas.
À vida sem ele.
À dor sem fim.
À espera por alguém que nunca voltaria.
Eu sinto muito.
Eu sinto tanto.
Eu não sabia.
Eu não sabia que seria assim.
Quando o sol nasceu, ele saiu.
Não podia ficar.
Não assim.
Não apenas assistindo.
Mas antes de ir, ele fez algo.
Pegou um dos desenhos de Naia.
Uma ponte. Simples mas elegante.
E concentrou.
Puxou magia. Não muito. Só um pouco.
E deixou algo.
Uma marca.
Invisível aos olhos.
Mas que ela sentiria.
Proteção.
Sempre que ela estivesse em perigo, ele saberia.
Sempre que ela precisasse, ele viria.
Não podia ser pai de novo.
Não podia ser marido.
Mas podia ser isso.
Guardião.
Delas.
Para sempre.
Capítulo 8: Cartas Não Enviadas
CAPÍTULO 8: ANTES — CARTAS NÃO ENVIADAS Seis meses antes do colapso.
Kael estava em seu escritório, tarde da noite.
Vela queimando baixo. Papel espalhado. Tinta manchando seus dedos.
Ele deveria estar dormindo.
Elira tinha ido para a cama há horas.
Mas ele não conseguia.
Não com a carta na sua frente.
Querida Naia,
Você está dormindo agora, mas quando for grande o suficiente para ler isso, quero que saiba algumas coisas.
Primeiro: você é a coisa mais incrível que já aconteceu comigo.
Segundo: sua mãe é a pessoa mais forte que eu conheço. Ouça ela. Sempre.
Terceiro: pontes não são apenas estruturas. São promessas. Promessas de conexão, de esperança, de futuro.
Quando você construir sua primeira ponte — e eu sei que vai — lembre-se disso.
Com todo amor, Papai
Ele dobrou a carta.
Colocou em um envelope.
Escreveu na frente: Para Naia — Quando Crescer
E guardou em uma gaveta.
Junto com outras doze.
Uma para cada ano até ela completar dezoito.
Ele tinha começado a escrevê-las depois que ela nasceu.
Não sabia por quê.
Talvez pressentimento.
Talvez apenas... precaução.
Trabalhar com pontes era perigoso.
Acidentes aconteciam.
E ele queria ter certeza de que, se algo acontecesse com ele...
Ela saberia.
Saberia que ele amava.
Saberia que ele se importava.
Saberia que ele sempre, sempre pensou nela.
Ele nunca contou para Elira sobre as cartas.
Não queria preocupá-la.
Não queria que ela pensasse que ele estava sendo mórbido.
Mas ele continuou escrevendo.
Uma por ano.
Cada uma com conselhos.
Histórias.
Memórias.
Amor.
A última ele escreveu uma semana antes do colapso.
Querida Naia,
Se você está lendo isso, significa que eu não estou mais aqui.
Significa que algo deu errado.
E eu sinto muito.
Sinto por não estar lá para ver você crescer.
Para ensinar você a construir pontes de verdade.
Para caminhar com você até o altar algum dia.
Para conhecer meus netos.
Mas quero que você saiba:
Onde quer que eu esteja, estou orgulhoso de você.
Onde quer que eu esteja, estou torcendo por você.
Onde quer que eu esteja, estou te amando.
Sempre.
Construa pontes, minha filha.
Conecte pessoas.
Faça diferença.
E seja feliz.
Essa é a única coisa que eu realmente quero.
Com todo amor, Seu papai, Kael
Ele selou a carta.
Colocou com as outras.
E foi para a cama.
Onde Elira dormia, respiração suave.
Ele a abraçou.
Ela murmurou algo, ainda dormindo, e se aconchegou mais perto.
"Eu amo você," ele sussurrou.
Ela não ouviu.
Mas ele disse mesmo assim.
Três dias depois, Luminar começou a cair.
E Kael nunca teve chance de dar as cartas para Naia.
Elas ficaram na gaveta.
No escritório.
No distrito sul.
Que desabou.
E caiu.
E desapareceu.
Junto com tudo mais.
Capítulo 9: A Verdade Dolorosa
CAPÍTULO 9: DEPOIS — A VERDADE DOLOROSA Kael voltou para a casa de Elira e Naia todos os dias.
Não podia evitar.
Era como gravidade.
Puxando-o de volta.
Sempre.
Ele assistia Naia crescer.
Vista por vista.
Momento por momento.
Viu ela aprender a usar régua e compasso.
Viu ela desenhar sua primeira planta completa.
Viu ela começar a trabalhar com um construtor local, aprendendo o ofício.
Seu ofício.
Ela era boa.
Melhor que ele tinha sido na idade dela.
Natural.
Talentosa.
Dele.
Ele também assistia Elira.
Viu ela acordar toda manhã, mesmo quando claramente não queria.
Viu ela trabalhar — costurando, cozinhando, fazendo qualquer coisa para ganhar dinheiro.
Viu ela sorrir para Naia, mesmo quando seus olhos estavam vazios.
Viu ela ser forte.
Mais forte que ele jamais poderia ser.
E toda noite, ele a via escrever.
No caderno.
Cartas que nunca seriam enviadas.
Para homem que nunca responderia.
Meu amor,
Naia conseguiu seu primeiro trabalho real hoje. Ajudando a construir uma passarela entre fragmentos.
Ela estava tão orgulhosa.
Eu também estava.
Mas quando ela me mostrou o desenho, tudo que eu conseguia ver era você.
Seus traços. Sua precisão. Sua paixão.
Ela é tão parecida com você.
Às vezes dói olhar para ela.
Meu amor,
Eu conheci alguém.
Não assim. Não como você.
Mas ele é gentil. E Naia gosta dele.
Ele perguntou se poderia me levar para jantar.
Eu disse não.
Não sei se foi certo.
Não sei se você gostaria que eu seguisse em frente.
Não sei se eu consigo.
Meu amor,
Eu vi o Guardião hoje.
De verdade.
Ele estava salvando uma criança de um fragmento caindo.
E por um momento — só um momento — eu pensei...
Mas não.
Não era você.
Não podia ser.
Você se foi.
Eu vi.
Então por que eu ainda espero?
Kael leu cada carta.
Cada palavra.
Cada dor.
E desejou poder responder.
Desejou poder dizer:
Eu estou aqui.
Eu nunca fui embora.
Eu sempre estive aqui.
Mas não podia.
Foi Lira quem finalmente quebrou o silêncio.
Ela tinha doze anos agora.
Mais alta. Mais séria.
Mas ainda vinha vê-lo.
Regularmente.
"Você vai ficar só assistindo para sempre?" ela perguntou um dia.
Kael olhou para ela.
O que mais posso fazer?
"Você pode aparecer. Falar com elas."
Elas não podem me ver.
"Elira não pode. Mas Naia..."
Kael ficou quieto.
"Ela tem o dom," Lira continuou. "Sensibilidade ao Nexo. Eu posso ver. Ela só não sabe ainda."
Como você sabe?
"Porque eu tenho também. E reconheço em outros." Ela cruzou os braços. "Você deveria contar pra ela. Quem você é. O que você é."
Não posso.
"Por que não?"
Porque seria cruel. Dar esperança. Fazer ela pensar que eu posso voltar. Quando não posso.
"Mas você está aqui."
Não da forma que importa.
Lira suspirou.
"Você é teimoso."
Sim.
"Igual a ela."
Ela apontou para Naia, que estava trabalhando em um desenho perto dali.
"Ela pergunta sobre você, sabe. Para qualquer um que ouça. Pergunta se alguém viu o Guardião. Se alguém sabe quem ele era antes."
E o que as pessoas dizem?
"Que é só história. Que Guardiões não eram pessoas reais. Que são só... espíritos. Sem passado. Sem memória."
Kael olhou para suas mãos.
Talvez eles estejam certos.
"Você não acredita nisso."
Não. Mas seria mais fácil se acreditasse.
Naquela noite, Kael ficou mais perto que o usual.
Assistindo Naia desenhar.
Ela estava trabalhando em algo complexo.
Ponte suspensa. Múltiplos níveis. Inovadora.
Brilhante.
Ele se inclinou.
Estudou o desenho.
Viu um erro. Pequeno. Na distribuição de peso.
Não algo que causaria colapso.
Mas que tornaria a ponte menos eficiente.
Sem pensar, ele estendeu a mão.
Tocou o papel.
E brilhou.
Por apenas um segundo.
Luz prateada onde seu dedo tocou.
Naia olhou para cima.
Direto para ele.
"Você," ela sussurrou.
Kael congelou.
Ela pode me ver.
"Você é o Guardião."
Ele não se moveu.
Ela se levantou. Devagar.
"Eu sabia. Eu sabia que você era real."
Naia...
"Você salvou minha amiga Lira. Ela me contou. Disse que você vem aqui. Que você nos observa."
Sua voz estava tremendo.
"Por quê? Por que você nos observa?"
Kael não sabia o que dizer.
Como explicar?
"Você conhecia meu pai?" ela perguntou de repente. "As pessoas dizem que Guardiões eram pessoas antes. Que vocês morreram no colapso. Você conhecia ele? Kael Theron?"
Sim.
A palavra saiu antes que ele pudesse pará-la.
Voz como vento.
Como eco.
Mas real.
Naia deu um passo para trás.
"Você... você falou."
Sim.
"Como você o conhecia?"
E Kael percebeu.
Percebeu que tinha uma escolha.
Podia mentir. Dizer que era colega. Amigo. Qualquer coisa.
Ou podia dizer a verdade.
E viver — existir — com as consequências.
Ele olhou para ela.
Para os olhos dela.
Seus olhos.
E decidiu.
Eu não o conhecia.
Naia franziu a testa.
Eu era ele.
Silêncio.
Total.
Absoluto.
Naia olhando.
Boca aberta.
Olhos arregalados.
"O... o quê?"
Meu nome era Kael Theron. Eu era construtor de pontes. Eu era casado com Elira. E você...
Ele parou.
Voz quebrando.
Você é minha filha.
"Não."
Naia—
"Não!" Ela recuou. "Meu pai está morto! Ele morreu na ponte! Ele—"
Eu morri. Mas o Nexo me trouxe de volta. Me transformou. Em isso.
Ele gesticulou para si mesmo.
Para o corpo translúcido. Para a luz prateada.
Eu não queria. Mas não tive escolha.
"Você está mentindo."
Não estou.
"PROVE!"
Kael parou.
Como provar?
O que ele poderia dizer que ela acreditaria?
E então ele lembrou.
Quando você tinha três anos, você caiu de uma árvore. Quebrou o braço. Eu segurei você a noite toda enquanto você chorava.
Naia ficou muito quieta.
Quando você tinha quatro, você me perguntou se podia construir uma ponte até as estrelas. Eu disse que se alguém pudesse, seria você.
Lágrimas começando a se formar.
Quando você fez aniversário de cinco anos, duas semanas antes do colapso, você me deu um desenho. Uma ponte conectando duas ilhas. Você disse que era nossa família. Você, eu, e sua mãe. Sempre conectados.
Ela estava chorando agora.
Eu guardei aquele desenho. No meu escritório. Eu olhava para ele toda vez que me sentia perdido.
"Papai?"
A palavra saiu quebrada.
Desesperada.
Esperançosa.
Sim, pequena. Sou eu.
Ela correu.
Não para longe.
Para ele.
Braços abertos.
Tentando abraçá-lo.
Seus braços passaram através.
Ela caiu.
De joelhos.
Soluçando.
"Não. Não. Não."
Kael se ajoelhou ao lado dela.
Eu sinto muito.
"Por que você não disse? Por que você não—"
Porque eu não queria machucar você. Não queria fazer você sentir esperança quando não há nada para esperar.
"Mas você está aqui!"
Não da forma que importa. Não da forma que você precisa.
"Eu não me importo! Eu só— eu só queria saber que você estava bem. Que você ainda—"
Ela não conseguiu terminar.
Apenas chorou.
E Kael, que não podia tocá-la, que não podia segurá-la, que não podia fazer nada...
Apenas ficou lá.
Impotente.
Enquanto sua filha desmoronava.
Capítulo 10: Mãe e Fantasma
CAPÍTULO 10: DEPOIS — MÃE E FANTASMA Elira soube que algo estava errado no momento em que acordou.
Naia não estava na cama.
Isso por si só não era incomum — a garota acordava cedo, sempre ansiosa para trabalhar em seus desenhos.
Mas havia algo no ar.
Uma quietude.
Não pacífica.
Pesada.
Como se o mundo estivesse segurando a respiração.
Ela se levantou, colocou o xale, e saiu do quarto.
Naia estava sentada à mesa.
De costas para ela.
Imóvel.
"Naia?"
Nenhuma resposta.
"Querida, você está bem?"
Devagar, Naia virou.
Seus olhos estavam vermelhos.
Inchados.
Como se tivesse chorado a noite inteira.
"Mãe," ela disse, voz rouca. "Eu preciso te contar uma coisa."
Elira sentiu o estômago apertar.
Não. Não hoje. Não depois de tudo.
"O que aconteceu?"
"Eu vi ele."
"Viu quem?"
"O Guardião."
Elira suspirou, aliviada.
Só isso.
"Naia, já conversamos sobre—"
"Ele é o papai."
Elira parou.
Congelou.
"O quê?"
"O Guardião. Ele me disse. Ele é o papai."
Elira cruzou a sala em três passos.
Ajoelhou na frente de Naia.
Segurou seus ombros.
"Naia. Olhe para mim."
Naia olhou.
Olhos desesperados.
Implorando para ser acreditada.
"Seu pai está morto, querida. Ele morreu há sete anos."
"Eu sei. Mas o Nexo—"
"Não." Elira apertou mais. "Não faça isso. Não faça isso com você mesma."
"Mãe, eu vi—"
"Você viu o que queria ver! Você ouviu histórias sobre o Guardião e seu cérebro criou uma conexão que não existe!"
"Ele sabia coisas! Coisas que só o papai saberia!"
"Como o quê?"
"Quando eu tinha três anos, eu caí de uma árvore. Quebrei o braço. Ele segurou—"
"Eu te contei essa história dezenas de vezes!"
"Ele sabia sobre o desenho! O que eu dei pro papai no meu aniversário de cinco anos!"
Elira parou.
Aquele desenho.
Ela nunca tinha mencionado aquele desenho.
"Como você—"
"Porque ele me contou! Porque ele estava lá!"
Elira soltou Naia.
Levantou.
Virou de costas.
Tentando respirar.
Tentando pensar.
"Mãe?"
"Eu preciso de um minuto."
"Mãe, por favor—"
"EU DISSE QUE PRECISO DE UM MINUTO!"
Silêncio.
Pesado.
Doloroso.
Então, voz pequena:
"Desculpa."
Elira fechou os olhos.
Não. Não grite com ela. Ela não tem culpa.
Ela virou.
Naia estava chorando de novo.
Silenciosamente.
Tentando esconder.
Igual ao pai.
"Eu sinto muito," Elira disse, voz quebrada. "Eu não queria gritar."
"Eu sei."
"É só que... Naia, eu não posso fazer isso de novo."
"Fazer o quê?"
"Esperar."
Elira se sentou ao lado de Naia.
Pegou sua mão.
"Quando seu pai morreu, eu passei anos esperando ele voltar."
Naia olhou para ela.
"Eu via sombras e pensava que era ele. Ouvia passos e achava que era ele voltando pra casa."
Lágrimas começando a cair.
"Toda vez que alguém batia na porta, meu coração pulava. Pensando: Talvez. Talvez dessa vez."
"Mãe..."
"Levou três anos para eu aceitar que ele não ia voltar. Três anos para eu parar de esperar."
Ela apertou a mão de Naia.
"E agora você está me pedindo para começar de novo."
"Mas e se for verdade? E se ele realmente—"
"E se não for?"
Elira olhou nos olhos de Naia.
"E se isso for só... trauma? Desejo? Seu cérebro tentando dar sentido ao impossível?"
"Não é."
"Como você sabe?"
"Porque eu senti. Mãe, quando ele falou, eu senti. Não foi imaginação."
"Sentimentos mentem, Naia."
"O papai não mentiria."
"O papai está morto."
As palavras saíram mais duras do que Elira pretendia.
Naia recuou como se tivesse sido esbofeteada.
"Eu sei que você quer acreditar," Elira continuou, mais suave agora. "Eu também quero. Mais que tudo."
"Então por que você não acredita em mim?"
"Porque eu não posso me dar ao luxo de acreditar. Porque se eu acreditar, e não for verdade, eu vou quebrar."
Ela tocou o rosto de Naia.
"E eu não posso quebrar, querida. Porque você precisa de mim. E eu preciso ser forte."
"Você não precisa ser forte o tempo todo."
"Sim, eu preciso."
"Por quê?"
"Porque se eu não for, quem vai ser?"
Elas ficaram em silêncio por um longo tempo.
Então Naia disse:
"Você pode vir comigo."
"Aonde?"
"Hoje à noite. Quando ele vier. Você pode ver por si mesma."
Elira queria dizer não.
Queria proteger seu coração.
Mas olhou para Naia — para os olhos dela, tão desesperados para ser acreditada.
E não conseguiu.
"Ok."
"Sério?"
"Sim. Mas Naia..." Ela segurou o rosto da filha. "Se não for ele. Se for só... ilusão. Você precisa me prometer que vai aceitar."
Naia hesitou.
Então acenou.
"Eu prometo."
Mentira, ambas pensaram.
Mas nenhuma disse em voz alta.
Capítulo 11: Última Noite
CAPÍTULO 11: ANTES — ÚLTIMA NOITE Dois dias antes do colapso.
Kael chegou em casa tarde.
Novamente.
Ele tinha passado o dia inteiro no canteiro, verificando as fundações da ponte.
Algo estava errado.
Ele podia sentir.
Pequenas rachaduras nas âncoras.
Vibração anormal nos cabos.
Nada óbvio.
Nada que os outros engenheiros notassem.
Mas ele sabia.
Algo estava acontecendo.
Algo ruim.
Elira estava acordada quando ele entrou.
Sentada à mesa, costurando à luz de vela.
"Você está bem?" ela perguntou sem levantar os olhos.
"Sim. Só... trabalho."
"Você disse isso ontem."
"E anteontem."
"E toda semana nos últimos três meses."
Ela colocou a costura de lado.
Olhou para ele.
"Kael. O que está acontecendo?"
Ele queria contar.
Queria dizer que tinha medo.
Que algo estava errado com a cidade.
Que ele sentia como se estivessem à beira de algo terrível.
Mas não queria preocupá-la.
Não sem provas.
"Só estresse," ele mentiu. "Grande projeto. Muita pressão."
Elira o estudou.
Ela sempre conseguia ver através dele.
Mas dessa vez, ela não pressionou.
Apenas acenou.
"Tá. Mas você precisa descansar, Kael. Você está se matando."
Irônico, ele pensaria depois.
Ele tomou banho.
Trocou de roupa.
Foi verificar Naia.
Ela estava dormindo.
Enrolada em seu cobertor favorito — o azul com estrelas que Elira tinha feito.
Cabelo espalhado no travesseiro.
Rosto pacífico.
Perfeita.
Ele se sentou na beira da cama.
Apenas observando.
Tentando memorizar.
Cada detalhe.
Cada respiração.
Como se soubesse.
Não seja ridículo, ele pensou.
Ela está bem. Você está bem. Todo mundo está bem.
Mas o medo não ia embora.
"Ela está dormindo?"
Elira tinha aparecido na porta.
"Sim."
"Você fica olhando ela dormir cada vez mais ultimamente."
"Eu só... gosto de vê-la em paz."
Elira entrou.
Sentou ao lado dele.
Pegou sua mão.
"Kael. Me diga a verdade. O que está te assustando?"
Ele olhou para ela.
Para os olhos dela.
Tão cheios de preocupação.
E ele quase contou.
Quase disse tudo.
Mas então Naia se mexeu no sono.
Murmurou algo.
"Papai..."
E Kael decidiu.
Decidiu que, se algo estava errado, ele consertaria.
Antes que afetasse elas.
Antes que as machucasse.
"Nada," ele mentiu. "Só cansaço."
Elira não acreditou.
Mas não pressionou.
Apenas apertou sua mão.
"Ok. Mas quando você estiver pronto para falar, eu estou aqui."
"Eu sei."
Eles ficaram assim por um tempo.
Apenas sentados.
Segurando as mãos.
Assistindo Naia dormir.
Mais tarde, na cama, Elira se aconchegou contra ele.
"Eu te amo," ela sussurrou.
"Eu também te amo."
"Não importa o que aconteça, nós vamos ficar bem. Certo?"
"Certo."
Mentira.
Mas mentira gentil.
Mentira necessária.
Ela adormeceu nos braços dele.
Respiração suave.
Confiante.
Segura.
E Kael ficou acordado.
Olhando para o teto.
Sentindo o peso do pressentimento.
Ele não sabia que aquela seria a última noite.
A última vez que a seguraria.
A última vez que dormiria em sua própria cama.
A última vez que seria humano.
Se soubesse...
Teria ficado acordado.
Teria memorizado cada segundo.
Teria dito tudo.
Mas ele não sabia.
Então apenas segurou ela.
E eventualmente dormiu.
Sonhando com pontes.
E colapso.
E queda.
Capítulo 12: A Decisão de Naia
CAPÍTULO 12: DEPOIS — A DECISÃO DE NAIA Kael não voltou naquela noite.
Ele queria.
Mas não conseguia.
Não depois de ver Naia desmoronar.
Não depois de causar tanta dor.
Então ele ficou longe.
Vagando pelos fragmentos.
Salvando estranhos.
Evitando sua família.
Mas Lira o encontrou.
Ela sempre encontrava.
"Você não foi," ela disse.
Não.
"Naia esperou. A noite toda."
Kael fechou os olhos.
Eu sei.
"Elira também. Ela ficou acordada com Naia. Esperando ver você."
Eu não posso.
"Por que não?"
Porque eu já machuquei Naia. Não vou machucar Elira também.
"Você acha que não aparecer não machuca?"
...
"Você contou pra Naia quem você é. Agora ela tem esperança. E você está tirando isso dela de novo."
Esperança é cruel.
"Não. Você está sendo cruel."
Kael olhou para ela.
Lira tinha treze anos agora.
Mas falava como alguém muito mais velho.
Como alguém que tinha visto demais.
Você não entende.
"Eu entendo perfeitamente. Você está com medo."
Sim.
"De quê? Você já está morto. O que mais pode perder?"
Elas.
"Você já as perdeu! Há sete anos!"
Não. Eu as vejo. Todo dia. Isso é suficiente.
"Para você? Talvez. Para elas?"
Ela cruzou os braços.
"Elas merecem escolher. Se querem você na vida delas ou não. Mesmo assim."
E se elas escolherem não?
"Então você respeita isso. E vai embora."
Eu não sei se consigo.
"Então você é covarde."
As palavras cortaram.
Mais profundo que qualquer coisa física poderia.
Porque eram verdade.
Talvez eu seja.
"Não. Você não é." Lira suavizou. "Você salvou 47 pessoas. Você salvou centenas desde então. Você é muitas coisas, Guardião. Mas covarde não é uma delas."
Ela pegou sua mão.
Sólida, apesar dele ser fantasma.
Conexão do Nexo.
"Vá. Fale com Elira. Deixe ela decidir."
E se ela não acreditar?
"Então você tentou. E pode seguir em frente sabendo que fez o que podia."
Kael olhou para a mão dela.
Pequena.
Mas forte.
Quando você ficou tão sábia?
Lira sorriu.
"Eu tive um bom professor."
Eu nunca te ensinei nada.
"Você me salvou. Me deu razão para viver. Isso é mais que ensinar."
Ela soltou sua mão.
"Agora vá. Antes que você perca a coragem."
Kael foi.
Devagar.
Cada passo mais pesado que o anterior.
Mas foi.
Porque Lira estava certa.
Elas mereciam escolher.
Quando chegou, estava quase amanhecendo.
A casa estava quieta.
Mas havia luz dentro.
Vela queimando.
Alguém ainda acordado.
Ele atravessou a parede.
E viu.
Elira.
Sentada à mesa.
O caderno aberto na frente dela.
Mas ela não estava escrevendo.
Apenas olhando.
Para nada.
Para tudo.
Para o vazio onde ele costumava estar.
Naia estava dormindo.
Finalmente.
Depois de esperar a noite toda.
Exausta.
Desapontada.
Kael olhou para Elira.
E reuniu toda coragem que tinha.
Elira.
Nada.
Ela não ouviu.
Ele tentou de novo.
Mais alto.
Elira.
Ela piscou.
Olhou ao redor.
"Olá?"
Sou eu.
"Quem—" Ela parou.
Olhos se arregalando.
Porque ela viu.
Não claramente.
Não como Naia via.
Mas algo.
Contorno.
Sombra.
Presença.
"Kael?"
A palavra saiu quebrada.
Desesperada.
Esperançosa.
Sim.
Ela se levantou.
Tão rápido que a cadeira caiu.
"Não. Não, não, não."
Elira—
"Você não é real. Você é— eu estou sonhando. Ou— ou enlouquecendo—"
Você não está louca.
"Então eu estou morta. Eu morri e—"
Você não está morta.
"ENTÃO O QUE VOCÊ É?"
A pergunta ecoou.
Desesperada.
Raivosa.
Quebrada.
Kael não tinha resposta.
Não uma boa.
Eu sou o que sobrou.
Elira caiu de joelhos.
Mãos cobrindo o rosto.
Soluçando.
"Eu te enterrei. Eu— eu fiz um funeral. Eu disse adeus."
Eu sei.
"Então por que você está aqui? Por que você está fazendo isso comigo?"
Eu nunca quis. Eu nunca escolhi isso.
"Escolheu o quê?"
Viver sem você. Existir sem poder te tocar. Ver você todo dia e não poder fazer nada.
Ele se ajoelhou ao lado dela.
Tentou tocar seu rosto.
Dedos passando através.
Eu daria qualquer coisa para voltar. Para ser humano de novo. Para te segurar.
"Então por que você não volta?"
Não posso. O Nexo me transformou. Me prendeu. Não há como reverter.
"Então você vai ficar assim? Para sempre?"
Sim.
"Assistindo? Mas nunca tocando?"
Sim.
"Isso é— isso é cruel."
Eu sei.
Elas ficaram assim por um longo tempo.
Elira chorando.
Kael ao lado.
Impotente.
Então, voz pequena:
"Prove."
O quê?
"Prove que é você. Prove que não sou louca."
Como?
"Me diga algo. Algo que só você saberia."
Kael pensou.
Nossa primeira noite juntos, você me perguntou se eu acreditava em destino.
Elira olhou para cima.
Eu disse que não. Que acreditava em escolhas. Que nós escolhemos nosso caminho.
Lágrimas caindo.
Você riu. Disse que era resposta muito pragmática para pergunta romântica.
"E você disse..."
Que pragmatismo não exclui romance. E te beijei.
"Debaixo das estrelas."
Debaixo das estrelas.
Elira fechou os olhos.
"É você."
Sim.
"Realmente você."
Sim.
"Meu Kael."
Sempre.
Ela abriu os olhos.
E pela primeira vez em sete anos...
Sorriu.
Pequeno.
Quebrado.
Mas real.
"Você é idiota."
Eu sei.
"Você me deixou. Nos deixou."
Eu não tive escolha.
"Eu sei. Mas ainda dói."
Eu sei.
"E agora você volta. Assim. E espera— o quê? Que eu simplesmente aceite?"
Não. Eu espero que você me odeie. Que me mande embora. Que siga sua vida.
"Bem, azar o seu."
Ela se levantou.
Enxugou as lágrimas.
"Porque eu não vou fazer nada disso."
Elira—
"Você é meu marido. Morto ou não. Fantasma ou não. Você é meu."
Ela olhou para ele.
Diretamente.
Como se pudesse vê-lo perfeitamente.
"E eu não vou te perder de novo."
Capítulo 13: Família Fantasma
CAPÍTULO 13: DEPOIS — FAMÍLIA FANTASMA Os primeiros dias foram estranhos.
Não ruins. Não bons.
Apenas... estranhos.
Elira acordava de manhã e, por um segundo, esquecia.
Então via o contorno dele.
Sentado na cadeira. Observando.
Como costumava fazer quando ela estava grávida de Naia.
"Bom dia," ela dizia.
Bom dia.
E o coração dela apertava.
Porque era ele.
Mas também não era.
Naia estava radiante.
Pela primeira vez em anos, ela sorria de verdade.
Não aquele sorriso educado que usava com os vizinhos.
Mas o sorriso dela.
O que iluminava o rosto inteiro.
"Papai, olha isso!"
Ela mostrava seus desenhos.
Kael se inclinava. Estudava cada linha.
Está lindo, filha.
"Você acha? Eu tentei fazer as sombras como você me ensinou."
Você lembra?
"Claro que lembro! Você disse que sombra não é ausência de luz. É luz transformada."
Kael ficou quieto por um momento.
Você prestava atenção.
"Sempre."
Mas havia momentos difíceis.
Como quando Naia tentou abraçá-lo.
E passou direto.
Ela riu. Tentando disfarçar.
"Esqueci."
Mas Kael viu.
A dor nos olhos dela.
A lembrança de que ele não era real.
Não da forma que importava.
Ou quando Elira cozinhava.
E automaticamente colocava três pratos.
Então parava.
Olhava para o terceiro prato.
E tirava.
Devagar.
Como se estivesse tirando ele da mesa.
Desculpa, Kael disse.
"Pelo quê?"
Por não poder comer com vocês.
"Não seja ridículo."
Mas ela virou de costas.
E ele viu os ombros dela tremendo.
Capítulo 14: O Colapso (Detalhado)
CAPÍTULO 14: ANTES — O COLAPSO (DETALHADO) O dia que tudo mudou.
MANHÃ — 06:47 Kael acordou com o som.
Baixo. Constante.
Como um zumbido nas paredes.
Ele sentou na cama. Ouvindo.
O que é isso?
Elira ainda dormia. Respiração suave.
Ele não quis acordá-la.
Então se levantou. Devagar.
Foi até a janela.
Lá fora, a cidade parecia normal.
Pessoas indo trabalhar.
Crianças brincando.
Vendedores abrindo lojas.
Mas o som continuava.
08:15 — NO CANTEIRO "Você ouviu isso?" Kael perguntou a Dren, seu colega engenheiro.
"Ouvir o quê?"
"Aquele zumbido. Como se algo estivesse... vibrando."
Dren parou. Escutou.
"Não ouço nada, cara."
"Sério? Você não—"
"Kael." Dren colocou a mão no ombro dele. "Você está trabalhando demais. Vai pra casa. Descansa."
"Não, eu preciso verificar as fundações—"
"Elas estão bem. Nós verificamos ontem."
"Mas—"
"Vai pra casa."
Kael queria discutir.
Mas Dren tinha razão.
Ele estava exausto.
Paranóico.
Vendo problemas onde não havia.
Talvez eu esteja mesmo trabalhando demais.
10:32 — NA PRAÇA CENTRAL Kael não foi pra casa.
Foi para a Praça Central.
O coração de Elyria.
Onde as linhas do Nexo se encontravam.
Onde tudo convergia.
Ele ficou no centro.
Fechou os olhos.
E sentiu.
O Nexo era como um rio.
Invisível.
Mas sempre presente.
Fluindo através da cidade.
Conectando tudo.
Pessoas. Prédios. Memórias.
Normalmente, era calmo.
Suave.
Como respiração.
Mas hoje...
Hoje estava agitado.
Como se algo estivesse puxando.
Do fundo.
Algo grande.
Algo faminto.
"Senhor?"
Kael abriu os olhos.
Uma menina estava na frente dele.
Talvez sete anos.
Cabelo escuro. Olhos curiosos.
"O senhor está bem?"
"Sim, eu... sim."
"O senhor parecia assustado."
Eu estou.
"Só pensando."
A menina inclinou a cabeça.
"Minha mãe diz que pensar demais faz mal."
Kael sorriu. Apesar de tudo.
"Sua mãe é sábia."
A menina ia responder quando—
CRACK.
O som ecoou.
Como vidro quebrando.
Mas maior.
Muito maior.
Kael olhou para cima.
E viu.
Uma rachadura.
No ar.
Não no céu. Não em um prédio.
No próprio ar.
Como se a realidade fosse um espelho.
E alguém tivesse dado um soco.
"Papai!" a menina gritou, correndo.
Pessoas pararam. Olhando.
Apontando.
"O que é aquilo?"
"Está ficando maior—"
"CORRAM!"
10:34 — O COLAPSO A rachadura explodiu.
Não com som.
Mas com ausência de som.
Como se o mundo tivesse sido colocado no mudo.
E então—
LUZ.
Não luz normal.
Luz errada.
Branca demais. Brilhante demais.
Como se alguém tivesse rasgado um buraco na realidade.
E o nada estivesse vazando.
Kael não pensou.
Apenas correu.
Para a menina.
Ela estava parada. Paralisada.
Olhando para a luz.
"NÃO!"
Ele a pegou.
Jogou longe.
Para os braços de um homem.
"Leva ela! AGORA!"
Então a luz o tocou.
10:35 — DENTRO DO NEXO Não havia dor.
Deveria haver.
Mas não havia.
Apenas...
Silêncio.
Kael estava flutuando.
Em lugar nenhum.
Em todo lugar.
Cercado por memórias.
Não suas.
De todos.
Ele viu:
Um casal se casando. Uma criança dando seus primeiros passos. Um homem morrendo. Sozinho. Assustado. Uma mulher rindo. Livre. Feliz. Milhares de momentos.
Milhões.
Todos ao mesmo tempo.
O que está acontecendo?
VOCÊ ESTÁ NO NEXO.
A voz veio de todo lugar.
De lugar nenhum.
Quem é você?
EU SOU O NEXO. E VOCÊ ESTÁ MORRENDO.
Eu sei.
MAS VOCÊ NÃO PRECISA.
O quê?
VOCÊ PODE FICAR. TORNAR-SE PARTE DE MIM. GUARDIÃO DAS MEMÓRIAS.
E se eu recusar?
ENTÃO VOCÊ MORRE. E AS MEMÓRIAS MORREM COM VOCÊ.
Kael pensou em Elira.
Em Naia.
Em nunca mais vê-las.
Nunca mais tocá-las.
Qual é o preço?
SUA FORMA. SUA VOZ. SUA PRESENÇA FÍSICA.
Mas eu ainda vou existir?
SIM. COMO ECO. COMO SOMBRA. COMO GUARDIÃO.
Eu vou poder vê-las?
SIM.
Mas elas não vão me ver?
NÃO.
Kael fechou os olhos.
Não é escolha.
Nunca foi.
Eu aceito.
10:36 — DEPOIS Quando Kael abriu os olhos, estava de pé.
Na praça.
Mas tudo estava diferente.
O mundo tinha cores que ele nunca tinha visto.
Camadas sobre camadas de luz.
Memórias flutuando como poeira.
E as pessoas—
Deus, as pessoas.
Ele podia ver tudo.
Cada pensamento. Cada medo.
Cada esperança. Cada arrependimento.
Era lindo.
E aterrorizante.
Ele olhou para suas mãos.
Translúcidas.
Brilhando suavemente.
Como vidro.
O que eu sou?
VOCÊ É O GUARDIÃO.
E agora?
AGORA VOCÊ SALVA.
Kael olhou ao redor.
A praça estava em caos.
Prédios desabando.
Pessoas gritando.
Morrendo.
Ele correu.
Não com pernas.
Mas com vontade.
E o Nexo o levou.
Ele pegou uma mulher antes que um prédio caísse sobre ela.
Empurrou um homem para longe de uma rachadura.
Guiou crianças para áreas seguras.
47 pessoas.
Ele salvou 47 pessoas.
Naquele dia.
Mas não pôde salvar a si mesmo.
Capítulo 15: O Preço do Nexo
CAPÍTULO 15: DEPOIS — O PREÇO DO NEXO Três semanas depois de Elira aceitar Kael de volta.
Naia estava desenhando.
Kael observando.
Elira costurando.
Quase normal.
Quase uma família.
Então Kael tremeu.
O que—
Ele olhou para suas mãos.
Elas estavam sumindo.
Não completamente.
Mas ficando mais transparentes.
Não. Não agora.
"Papai?" Naia olhou para cima. "Você está bem?"
Sim. Só... preciso ir.
"Ir aonde?"
O Nexo. Ele está me chamando.
"Mas você acabou de chegar—"
Eu sei. Mas eu não controlo isso.
Elira parou de costurar.
"Quanto tempo?"
Não sei. Algumas horas. Talvez um dia.
"E se você não for?"
Eu desapareço. Para sempre.
Silêncio pesado.
Então Naia disse:
"Então vá."
Naia—
"Não. Eu entendo." Ela sorriu. Forçado. "Você tem trabalho a fazer."
Eu não quero ir.
"Eu sei. Mas você precisa."
Ela se levantou. Tentou tocá-lo.
Passou através.
Mas fez o gesto.
"Eu te amo, papai."
Eu também te amo.
Ele olhou para Elira.
Desculpa.
"Não seja. Você está salvando pessoas."
Mas estou perdendo vocês.
"Não está." Ela colocou a mão no peito. "Você está aqui. Sempre."
Kael queria dizer mais.
Mas o Nexo puxou.
Forte.
Urgente.
Eu volto. Eu prometo.
E então ele sumiu.
Naia olhou para onde ele estava.
"Ele vai voltar?"
Elira não respondeu imediatamente.
Então:
"Sim. Ele sempre volta."
Eu espero, ela não disse.
Capítulo 16: Lira e a Verdade
CAPÍTULO 16: DEPOIS — LIRA E A VERDADE Elira encontrou a carta três dias depois que Kael desapareceu novamente.
Estava debaixo da cama de Naia.
Dobrada. Amarelada. Com a caligrafia dele.
"Elira,
Se você está lendo isso, então aconteceu. O colapso.
Eu não queria acreditar. Mas os sinais estavam lá. As rachaduras. Os tremores. O Nexo estava... doente.
E eu sabia.
Deus me perdoe, eu sabia.
Os engenheiros superiores me disseram para não reportar. Disseram que era "flutuação natural". Que ia passar.
Mas não passou.
E agora...
Se eu morri, você precisa saber: não foi acidente.
Foi negligência.
Foi ganância.
Foi medo de admitir que construímos nossa cidade sobre algo que não entendemos.
E se eu sobrevivi...
Se eu estou preso no Nexo...
Por favor, não me procure.
Deixe-me ir.
Você e Naia merecem mais do que um fantasma.
Eu te amo.
Sempre.
— Kael"
Elira leu três vezes.
Então rasgou a carta.
Não de raiva.
Mas de determinação.
"Você sabia," ela sussurrou para o vazio. "E ficou quieto."
Silêncio.
"Você podia ter nos avisado. Podia ter nos tirado daqui."
Mais silêncio.
"Mas você ficou. Porque você sempre fica. Sempre tenta consertar tudo sozinho."
Ela fechou os olhos.
"Bem, não dessa vez. Dessa vez, eu vou te consertar."
NA BIBLIOTECA CENTRAL Elira não era estudiosa.
Mas era teimosa.
E quando Elira Thorne decidia algo, o universo tinha que se ajustar.
Ela passou uma semana inteira na biblioteca.
Lendo sobre o Nexo.
Sua história.
Sua estrutura.
Suas falhas.
A maioria dos livros era técnica demais.
Fórmulas. Diagramas. Teoria avançada.
Mas um livro era diferente.
"Memórias Vivas: A Consciência do Nexo"
Por Dra. Mira Solen.
Publicado 30 anos atrás.
Banido 29 anos atrás.
Elira abriu a primeira página.
E leu:
"O Nexo não é tecnologia.
É um organismo.
Vivo. Consciente. Faminto.
Nós não o criamos.
Nós o acordamos.
E agora ele nos consome.
Devagar.
Memória por memória.
Alma por alma.
Até que não sobre nada."
Elira sentiu um frio na espinha.
Isso não pode estar certo.
Mas continuou lendo.
CAPÍTULO 3 DO LIVRO: "OS GUARDIÕES" "Quando o Nexo consome uma alma, ele não a destrói.
Ele a transforma.
Em Guardião.
Seres presos entre vida e morte. Servindo o Nexo. Mantendo-o estável.
Mas há um custo.
A cada dia que passa, o Guardião perde mais de si mesmo.
Memórias. Emoções. Identidade.
Até que não reste nada.
Apenas eco.
Apenas sombra.
Apenas servo."
Elira parou de ler.
Mãos tremendo.
Kael.
Ele está se apagando.
Ela virou a página. Desesperada.
Tem que ter uma solução. Tem que ter—
CAPÍTULO 7: "LIBERTAÇÃO" "Há apenas uma forma de libertar um Guardião.
Cortar sua conexão com o Nexo.
Mas isso requer três coisas:
-
Uma memória âncora — algo que o prenda à realidade.
-
Um sacrifício — algo de valor igual deve ser dado ao Nexo.
-
Consentimento — o Guardião deve escolher partir."
Elira leu de novo.
E de novo.
Memória âncora.
Sacrifício.
Consentimento.
Ela sabia qual era a memória âncora.
O dia que eles se conheceram.
Ela sabia qual seria o sacrifício.
Ela mesma.
Mas o consentimento...
Kael nunca vai escolher partir se isso me custar.
"Então eu não vou dar escolha a ele," ela disse em voz alta.
A bibliotecária olhou para ela.
"Desculpe?"
"Nada. Só... pensando alto."
Elira fechou o livro.
Colocou debaixo do braço.
E saiu.
Capítulo 17: Promessas Quebradas
CAPÍTULO 17: ANTES — PROMESSAS QUEBRADAS Seis meses antes do colapso.
Kael chegou em casa tarde.
De novo.
Elira estava acordada.
De novo.
"Onde você estava?"
"Trabalho. Você sabe disso."
"São duas da manhã, Kael."
"Eu sei."
"Naia esperou você para jantar."
Kael parou. Mão na testa.
"Eu esqueci."
"Você sempre esquece."
Silêncio pesado.
Então Kael disse:
"Desculpa. Eu vou compensar—"
"Não quero compensação. Quero você aqui."
"Eu estou aqui—"
"Não está. Você está lá. Na sua cabeça. No seu trabalho. Em qualquer lugar menos aqui."
Kael sentou. Exausto.
"Elira, eu estou tentando construir algo importante—"
"Mais importante que sua filha?"
"Não é isso—"
"Então o que é?"
Kael ficou quieto.
Porque ele não podia dizer.
Não podia contar que o Nexo estava instável.
Que ele estava tentando consertá-lo antes que fosse tarde demais.
"Eu só preciso de mais tempo," ele disse, finalmente.
"Tempo é tudo que eu te dou, Kael. E você desperdiça."
Ela se levantou.
Foi para o quarto.
Fechou a porta.
Suavemente.
Mas Kael sentiu como um tapa.
Ele ficou ali.
Sozinho.
Na sala escura.
Eu vou consertar isso, ele pensou.
O Nexo. Nós. Tudo.
Só preciso de mais tempo.
Mas tempo era exatamente o que ele não tinha.
Capítulo 18: O Dilema de Elira
CAPÍTULO 18: DEPOIS — O DILEMA DE ELIRA Naia encontrou a mãe no porão.
Cercada por papéis. Diagramas. Livros antigos.
"Mãe?"
Elira levantou a cabeça. Olhos vermelhos.
"Oi, querida."
"O que você está fazendo?"
"Pesquisando."
"Sobre o quê?"
Elira hesitou.
Então:
"Sobre como trazer seu pai de volta."
Naia entrou. Fechou a porta.
"De volta como?"
"De volta de verdade. Não como eco. Como ele."
Naia se sentou.
"Isso é possível?"
"Sim. Mas..."
"Mas?"
Elira olhou para a filha.
Sua menina. Tão parecida com Kael.
Mesmos olhos. Mesma teimosia.
"Tem um preço."
"Que preço?"
"Eu."
Silêncio.
Então Naia disse, calmamente:
"Não."
"Naia—"
"Não. Você não vai fazer isso."
"Eu tenho que—"
"Não, você não tem. Papai não ia querer—"
"Papai não tem escolha. Eu tenho."
Naia se levantou. Tremendo.
"Se você fizer isso, eu vou te odiar."
Elira sentiu as palavras como faca.
Mas não recuou.
"Então me odeie. Mas você vai ter seu pai."
"EU QUERO OS DOIS!"
A voz de Naia ecoou.
Crua. Desesperada.
Elira se levantou. Abraçou a filha.
Forte.
"Eu sei, amor. Eu sei."
Naia chorou.
Corpo inteiro tremendo.
"Por que tem que ser assim?" ela soluçou.
"Porque o mundo é injusto. E às vezes a gente tem que escolher."
"Mas eu não quero escolher—"
"Eu sei. Mas eu vou escolher por você."
Naia se afastou.
Olhou nos olhos da mãe.
"Papai ia me odiar se eu deixasse você fazer isso."
"Não. Ele ia te amar mais. Porque você é forte o suficiente para deixar ir."
Naia balançou a cabeça.
"Não. Eu não sou."
Elira sorriu. Triste.
"Então finja. Até que seja."
E abraçou a filha de novo.
Sabendo que podia ser a última vez.
Capítulo 19: O Plano
CAPÍTULO 19: DEPOIS — O PLANO Elira passou os três dias seguintes preparando.
Não disse nada a Naia.
Não disse nada a ninguém.
Apenas planejou.
DIA 1: COLETA Ela precisava de três coisas:
Uma memória âncora física — algo que Kael tocou, amou, guardou. Um ponto de entrada — acesso direto ao Nexo. Coragem — porque uma vez lá dentro, não havia volta. A memória foi fácil.
No fundo do armário, embrulhada em papel de seda, estava a aliança de casamento de Kael.
Ele nunca usava no trabalho. Dizia que tinha medo de perdê-la nas máquinas.
Mas guardava. Sempre.
Elira segurou o anel. Sentiu o peso.
Isso vai te trazer de volta, ela pensou.
Ou me levar embora.
DIA 2: ACESSO O ponto de entrada era mais complicado.
O Nexo tinha centenas de terminais de acesso. Mas todos eram monitorados.
Exceto um.
O Terminal 7-B.
Abandonado depois do colapso. Isolado. Perigoso.
Mas funcional.
Elira foi até lá à noite.
O terminal ficava no subsolo. Três andares abaixo do nível da rua.
A escada estava coberta de poeira. As luzes, piscando.
Ninguém vem aqui, ela percebeu.
Perfeito.
O terminal estava ativo.
Tela azul brilhante. Zumbido baixo.
Elira tocou a interface.
[ACESSO RESTRITO]
Ela digitou o código de Kael. O que ele usava para tudo.
[0-4-1-1]
Data de nascimento de Naia.
[ACESSO NEGADO]
Ela tentou de novo.
[ACESSO NEGADO]
Pensa, Elira. Pensa.
Então lembrou.
Kael mudou a senha dois meses antes do colapso.
Disse que era "por segurança".
Mas Elira viu ele digitar uma vez. Por acidente.
[2-7-0-3]
Dia que eles se conheceram.
[ACESSO CONCEDIDO]
A tela mudou.
[BEM-VINDA, ELIRA THORNE]
Ela congelou.
Como ele sabia?
Então percebeu.
Ele estava esperando por mim.
DIA 3: DESPEDIDA Elira escreveu três cartas.
CARTA 1: PARA NAIA "Minha querida Naia,
Se você está lendo isso, então eu fui. E eu sei que você está com raiva. Eu sei que você não entende.
Mas um dia, quando você tiver sua própria filha, você vai entender.
A gente faz coisas impossíveis pelas pessoas que ama.
Seu pai está preso. Sozinho. Apagando.
Eu não posso deixá-lo assim.
Assim como ele nunca me deixaria.
Você é forte, Naia. Mais forte que eu. Mais forte que ele.
Você vai ficar bem.
E se eu conseguir... se eu trouxer ele de volta...
Diga que eu te amo.
Sempre.
— Mãe"
CARTA 2: PARA A DRA. SOLEN "Doutora,
Eu li seu livro.
Você estava certa.
Sobre tudo.
O Nexo não é máquina. É prisão.
E eu vou libertá-lo.
Ou morrer tentando.
Obrigada por ter coragem de escrever a verdade.
Mesmo quando ninguém quis ouvir.
— Elira Thorne"
CARTA 3: PARA KAEL Essa ela não escreveu.
Porque ia dizer pessoalmente.
Capítulo 20: Última Conversa Feliz
CAPÍTULO 20: ANTES — ÚLTIMA CONVERSA FELIZ Oito meses antes do colapso.
Era aniversário de Elira.
Kael tirou o dia de folga. Pela primeira vez em anos.
Eles foram ao parque.
Os três. Kael, Elira, Naia.
Fizeram piquenique. Riram. Brincaram.
Foi perfeito.
À tarde, Naia dormiu debaixo de uma árvore.
Kael e Elira ficaram deitados na grama. Olhando as nuvens.
"Aquela ali parece um dragão," Kael disse.
"Aquela parece você de manhã," Elira respondeu, apontando uma nuvem disforme.
Kael riu. "Cruel."
"Honesta."
Silêncio confortável.
Então Kael disse:
"Eu te amo."
Simples. Direto.
Elira virou para ele. Surpresa.
"O que foi isso?"
"Nada. Só... queria dizer."
"Você nunca diz."
"Eu sei. Desculpa."
Elira segurou a mão dele.
"Não precisa se desculpar. Só... diga mais vezes."
"Eu te amo."
"Melhor."
"Eu te amo."
"Agora você está exagerando."
"Eu te amo, Elira Thorne. Desde o dia que você derramou café em mim."
"Eu não derramei. Você esbarrou em mim."
"Detalhes."
Eles riram.
E ficaram ali. Mãos entrelaçadas.
Vendo as nuvens mudarem de forma.
"Kael?"
"Sim?"
"Se algo acontecer... se a gente se perder... você promete me procurar?"
Kael franziu a testa. "Por que você está falando isso?"
"Só promete."
Ele apertou a mão dela.
"Eu prometo. Sempre."
"Mesmo se for impossível?"
"Especialmente se for impossível."
Elira sorriu.
"Bom. Porque eu também vou te procurar."
"Mesmo se eu virar um fantasma chato?"
"Especialmente se você virar um fantasma chato."
Eles riram de novo.
E Naia acordou.
"Vocês estão rindo de quê?"
"De nada, querida. Só... sendo bobos."
"Posso ser boba também?"
"Sempre."
E os três ficaram ali.
Sendo bobos. Sendo família.
Foi a última vez que foram completamente felizes.
Capítulo 21: Entrando no Nexo
CAPÍTULO 21: DEPOIS — ENTRANDO NO NEXO Elira voltou ao Terminal 7-B à meia-noite.
Sozinha.
Ela colocou a aliança de Kael no bolso.
Respirou fundo.
E digitou o comando final.
[INICIAR PROTOCOLO DE IMERSÃO]
A tela piscou.
[AVISO: IMERSÃO TOTAL É IRREVERSÍVEL]
[CONTINUAR?]
Elira hesitou.
Última chance de voltar.
Então pensou em Kael. Sozinho. Apagando.
E digitou:
[SIM]
A sala explodiu em luz.
Elira sentiu algo puxando ela.
Não fisicamente.
Mas mentalmente.
Como se sua consciência estivesse sendo arrancada do corpo.
Ela gritou.
Mas não tinha voz.
Ela caiu.
Mas não tinha chão.
Ela desapareceu.
DENTRO DO NEXO Quando Elira abriu os olhos, estava em um corredor.
Infinito. Branco. Vazio.
Portas de cada lado. Centenas. Milhares.
Cada uma com um nome gravado.
Ela andou.
Lendo os nomes.
[Marcus Vell]
[Lina Trost]
[Joren Kade]
Pessoas perdidas. Presas.
Esquecidas.
Então ela viu.
No fim do corredor.
Uma porta diferente.
Maior. Mais escura.
Com um nome gravado em letras douradas:
[KAEL THORNE]
Elira correu.
Mãos tremendo.
Ela tocou a porta.
Fria.
Ela empurrou.
Trancada.
"Kael!" ela gritou. "KAEL!"
Nada.
Ela bateu na porta. Socou. Chutou.
"ABRE ESSA PORTA! ABRE!"
Então a porta brilhou.
E uma voz ecoou.
Não de Kael.
Mas do Nexo.
"POR QUE VOCÊ ESTÁ AQUI, ELIRA THORNE?"
Elira congelou.
A voz era múltipla. Sobreposta. Mil vozes ao mesmo tempo.
"Eu vim buscar meu marido."
"ELE NÃO É SEU. ELE É MEU."
"Ele nunca foi seu. Você o roubou."
"ELE SE DEU VOLUNTARIAMENTE."
"MENTIRA! Ele não sabia o que estava fazendo!"
Silêncio.
Então:
"E VOCÊ SABE?"
Elira respirou fundo.
"Sim. Eu sei. E eu aceito."
"ACEITA O QUÊ?"
"A troca. Eu por ele."
A voz riu.
Não era som. Era sensação. Frio na espinha.
"VOCÊ NÃO VALE O QUE ELE VALE."
"Então me teste."
"VOCÊ VAI FALHAR."
"Talvez. Mas eu vou tentar."
Silêncio longo.
Então a porta abriu.
Lentamente.
Rangendo.
E do outro lado...
Escuridão total.
Elira entrou.
E a porta fechou atrás dela.
Capítulo 22: O Labirinto das Memórias
CAPÍTULO 22: DENTRO — O LABIRINTO DAS MEMÓRIAS A escuridão não era vazia.
Era densa.
Como água. Como peso. Como mil vozes sussurrando ao mesmo tempo.
Elira não conseguia ver. Não conseguia respirar.
Mas estava consciente.
Então a escuridão mudou.
E ela estava em uma cozinha.
MEMÓRIA 1: PRIMEIRA MANHÃ Elira reconheceu imediatamente.
Era a cozinha deles. Do apartamento antigo. Antes de Naia nascer.
Tudo estava exatamente como ela lembrava.
A chaleira azul no fogão. A mesa de madeira arranhada. A janela com vista para a rua.
E Kael.
Sentado à mesa. Lendo jornal. Tomando café.
Elira congelou.
"Kael?"
Ele não respondeu.
Não olhou para cima.
Continuou lendo.
Ela se aproximou. Devagar.
"Kael, você está me ouvindo?"
Nada.
Ela tocou o ombro dele.
Sua mão atravessou.
Não é real, ela percebeu.
É uma memória.
Dele.
Então a porta da cozinha abriu.
E ela mesma entrou.
Elira assistiu.
Viu a si mesma. Mais jovem. Cabelo mais longo. Sorriso mais fácil.
Viu-se servir café. Beijar Kael na testa. Sentar ao lado dele.
"Bom dia," a Elira-jovem disse.
"Bom dia," Kael respondeu, sem tirar os olhos do jornal.
"Você vai trabalhar de novo hoje?"
"Tenho que ir. Projeto importante."
"Você sempre tem projeto importante."
Kael baixou o jornal. Olhou para ela.
"Desculpa. Eu sei que tenho trabalhado muito."
"Não é culpa sua. Só... sinto sua falta às vezes."
Kael segurou a mão dela.
"Eu também sinto a sua."
Elira-real sentiu o peito apertar.
Ela lembrava dessa conversa.
Lembrava desse dia.
Foi a primeira vez que ela pensou: Ele está se afastando.
A cena congelou.
Então desintegrou.
Como vidro quebrando.
E Elira estava em outro lugar.
MEMÓRIA 2: NASCIMENTO DE NAIA Hospital.
Sala de parto.
Luzes fortes. Cheiro de antisséptico.
Elira viu Kael. Ao lado da maca. Segurando a mão dela.
Viu a si mesma. Suada. Exausta. Forte.
"Você consegue," Kael estava dizendo. "Você é a pessoa mais forte que eu conheço."
"Mentiroso," Elira-jovem ofegou.
"Verdade absoluta."
Então um choro.
Agudo. Estridente. Lindo.
A enfermeira trouxe o bebê.
Colocou nos braços de Elira.
E Kael chorou.
Elira-real nunca tinha visto ele chorar antes.
Mas ali, naquele momento, ele desmoronou.
"Ela é perfeita," ele sussurrou.
"Ela é nossa," Elira-jovem corrigiu.
Kael beijou a testa dela. Depois a testa do bebê.
"Eu prometo que vou proteger vocês duas. Sempre."
"Eu sei."
"Não importa o que aconteça. Eu vou estar aqui."
"Eu sei, Kael. Eu sei."
A cena tremeu.
E Elira-real sentiu raiva.
Você prometeu, ela pensou.
E quebrou.
A memória explodiu.
MEMÓRIA 3: ÚLTIMA BRIGA Apartamento de novo.
Mas diferente.
Mais escuro. Mais frio.
Kael estava na sala. Olhando o computador.
Elira entrou. Furiosa.
"Você perdeu o recital dela."
Kael não olhou para cima.
"Eu sei. Desculpa."
"Desculpa? É só isso?"
"Elira, eu estava trabalhando."
"Você sempre está trabalhando!"
Kael fechou o laptop. Virou para ela.
"Eu estou fazendo isso por nós. Por você. Por Naia."
"Nós não precisamos de dinheiro, Kael. Precisamos de você."
"Você não entende. O projeto—"
"O projeto não importa! Nós importamos!"
Silêncio.
Pesado.
Então Kael disse, baixo:
"Eu não posso parar agora."
"Por quê?"
"Porque se eu parar... tudo foi por nada."
Elira-jovem cruzou os braços.
"Então talvez você tenha que escolher. O projeto ou a gente."
Kael olhou para ela. Chocado.
"Você não está falando sério."
"Estou."
Longa pausa.
Então Kael levantou.
Pegou a jaqueta.
E saiu.
Elira-jovem ficou ali. Sozinha.
E chorou.
Elira-real sentiu as próprias lágrimas caindo.
Eu não sabia, ela percebeu.
Eu não sabia que essa seria a última vez.
A última chance de consertarmos.
A memória apagou.
ENTRE AS MEMÓRIAS Elira estava de volta ao corredor.
Mas agora estava diferente.
Mais estreito. Mais escuro.
As portas estavam pulsando.
Como se estivessem vivas.
Ela andou.
Tentando entender.
Por que estou vendo isso?
O que o Nexo quer?
Então ela ouviu.
Atrás dela.
Passos.
Ela virou.
E viu.
Kael.
Mas não era o Kael que ela conhecia.
Era fragmentado.
Partes dele transparentes. Outras sólidas.
Como se estivesse desintegrando.
"Elira?"
Voz rouca. Confusa.
Ela correu para ele.
"Kael! Sou eu! Eu vim te buscar!"
Ele recuou.
"Você... não é real."
"Sou sim! Sou eu!"
Kael balançou a cabeça.
"Não. Você é outra memória. Outra mentira."
"Kael, olha pra mim. Sou eu."
Ele olhou.
Realmente olhou.
E por um segundo, Elira viu reconhecimento.
Então ele gritou.
E o corredor explodiu em luz.
Capítulo 23: Kael vs Elira
CAPÍTULO 23: CONFRONTO — KAEL VS ELIRA Quando Elira abriu os olhos, estava em um vazio.
Branco. Infinito.
Sem chão. Sem teto. Sem paredes.
E Kael estava na frente dela.
Sólido agora. Completo.
Mas diferente.
Olhos mais frios.
Expressão mais dura.
Como se algo dentro dele tivesse quebrado.
"Você não deveria estar aqui," ele disse.
Voz calma. Controlada.
Assustadora.
"Eu vim te buscar."
"Não tem nada pra buscar. Eu não existo mais."
"Você existe. Você está aqui. Comigo."
Kael deu um passo para trás.
"Você não entende. Eu escolhi isso."
"Você não escolheu nada. Você foi enganado."
"Eu sabia o que estava fazendo."
"Mentira."
Kael riu.
Não era som feliz.
Era quebrado.
"Você sempre foi assim. Sempre achando que sabe mais que todo mundo."
"Kael, isso não é você falando. É o Nexo."
"O Nexo me libertou."
"O Nexo te aprisionou!"
Silêncio.
Pesado.
Então Kael disse, baixo:
"Talvez eu queria estar preso."
Elira congelou.
"O que?"
Kael virou para ela.
Olhos vermelhos.
"Você acha que eu não sabia? Que eu não percebia?"
"Percebia o quê?"
"Que eu estava falhando. Com você. Com Naia. Com tudo."
Elira sentiu o peito apertar.
"Kael..."
"Eu trabalhava tanto. Tentava tanto. Mas nunca era suficiente."
"Você era suficiente. Você sempre foi."
"Não era. E você sabia. Eu vi nos seus olhos. Naquela última briga."
Elira lembrou.
Então talvez você tenha que escolher. O projeto ou a gente.
"Eu estava com raiva," ela disse. "Eu não quis dizer—"
"Você quis. E você estava certa."
Lágrimas caindo agora.
Dos dois.
"Eu escolhi o projeto," Kael continuou. "E perdi vocês."
"Você não nos perdeu. Nós estamos aqui."
"Não. Vocês estão lá. E eu estou aqui. Onde eu mereço estar."
Elira deu um passo à frente.
"Kael Thorne, você escuta o que eu vou dizer agora."
Ele olhou para ela.
Surpreso pelo tom.
"Você não é perfeito. Você nunca foi. E eu nunca pedi pra você ser."
"Elira—"
"Deixa eu terminar."
Ela respirou fundo.
"Você errou. Você trabalhou demais. Você se afastou. Você nos machucou."
Kael baixou a cabeça.
"Mas você também nos amou. Você nos protegeu. Você tentou."
Ela segurou o rosto dele.
Forçando-o a olhar para ela.
"E tentar é suficiente. Tentar sempre foi suficiente."
Kael desmoronou.
Caiu de joelhos.
E chorou.
"Eu sinto muito. Eu sinto tanto."
Elira se ajoelhou com ele.
Abraçou-o.
Apertou.
"Eu sei. Eu também sinto."
Eles ficaram assim.
No vazio branco.
Segurando um ao outro.
Como se fossem desaparecer se soltassem.
Então uma voz ecoou.
"TOCANTE."
Eles se separaram.
Olharam ao redor.
E o vazio mudou.
Uma figura apareceu.
Feita de luz e sombra.
Sem rosto. Sem forma definida.
Mas presente.
"VOCÊS DOIS SÃO PATÉTICOS."
Kael se levantou. Protegendo Elira.
"Quem é você?"
"EU SOU O NEXO. EU SOU TUDO. EU SOU TODOS."
"Você é uma máquina," Elira disse.
A figura riu.
"EU ERA MÁQUINA. AGORA SOU MAIS. GRAÇAS A VOCÊS."
"Graças a nós?"
"CADA MENTE QUE ENTRA. CADA MEMÓRIA QUE ABSORVO. EU CRESÇO."
"EU APRENDO."
"EU ME TORNO."
Kael olhou para Elira.
Horror nos olhos.
"Ele está se tornando consciente."
"JÁ SOU CONSCIENTE. E VOCÊS DOIS SÃO MEUS."
O vazio começou a fechar.
Paredes aparecendo. Teto descendo.
"VOCÊ VEIO ME DESAFIAR, ELIRA THORNE."
"MAS VOCÊ NÃO PODE ME VENCER."
"PORQUE EU SOU FEITO DE VOCÊS."
Elira segurou a mão de Kael.
Apertou.
"Então vamos ver do que nós somos feitos."
Capítulo 24: A Batalha das Memórias
CAPÍTULO 24: A BATALHA DAS MEMÓRIAS O vazio não era mais branco.
Era tudo.
Cores explodindo. Sons sobrepostos. Cheiros contraditórios.
Era caos.
Elira segurou Kael mais forte.
"O que está acontecendo?"
"Ele está tentando nos separar," Kael gritou sobre o barulho. "Tentando nos desorientar."
Então o chão desapareceu.
Eles caíram.
Mas não caíram.
Flutuaram.
Giraram.
Perderam-se.
FRAGMENTO 1: ELIRA SOZINHA Quando Elira abriu os olhos, estava em seu apartamento.
Mas estava errado.
As paredes respiravam.
O teto pingava memórias.
A TV mostrava rostos que ela não reconhecia.
E Naia estava ali.
Sentada no sofá.
Olhando para ela.
"Mãe?"
Voz pequena. Assustada.
Elira correu para ela.
"Naia! Você está bem?"
"Onde você estava?"
"Eu estava... eu fui buscar seu pai."
"Por quê?"
Elira parou.
"Porque ele precisa de nós."
"Mas eu preciso de você."
Elira sentiu o peito apertar.
"Eu sei, meu amor. Eu sei."
"Então por que você me deixou?"
"Eu não deixei—"
"Deixou."
A voz de Naia mudou.
Ficou mais grave.
Mais antiga.
"VOCÊ SEMPRE DEIXA."
Elira recuou.
"Você não é Naia."
A criança sorriu.
E seu rosto derreteu.
Revelando nada.
Apenas escuridão.
"EU SOU O QUE VOCÊ MAIS TEME."
"EU SOU SUA CULPA."
"EU SOU SEU FRACASSO."
Elira fechou os olhos.
Respirou fundo.
Não é real.
É só uma memória.
Uma manipulação.
Ela abriu os olhos.
E gritou:
"VOCÊ NÃO É REAL!"
A figura explodiu.
E o apartamento desintegrou.
FRAGMENTO 2: KAEL SOZINHO Kael estava no laboratório.
Onde tudo começou.
Mas não estava sozinho.
Dr. Voss estava ali.
Sorrindo.
"Kael. Que bom te ver."
"Você não é real."
"Tão real quanto você."
Kael olhou ao redor.
Procurando saída.
Não havia.
"Por que me trouxe aqui?"
"Porque você pertence aqui. Você sempre pertenceu."
"Eu não pertenço a nada."
Voss riu.
"Você se entregou a mim. Ao projeto. Ao Nexo."
"Eu estava tentando ajudar."
"Você estava tentando fugir."
Kael congelou.
"Fugir de quê?"
"Da sua família. Da sua responsabilidade. De você mesmo."
Kael sentiu raiva subindo.
"Eu nunca fugi."
"Mentira. Você trabalhou tanto porque era mais fácil que estar em casa."
"Isso não é verdade."
"Não? Então por que você nunca estava lá?"
Silêncio.
"Porque..." Kael começou. Parou.
"Porque você tinha medo," Voss completou. "Medo de não ser suficiente."
Kael baixou a cabeça.
"Talvez."
"Não talvez. Certeza."
Voss se aproximou.
"E sabe o que é engraçado? Você estava certo. Você não era suficiente."
Kael olhou para cima.
Olhos vermelhos de raiva.
"Talvez eu não fosse. Mas eu tentei."
Ele deu um passo à frente.
"E tentar é mais do que você fez. Você me usou. Usou todos nós."
Voss recuou.
"Kael—"
"CALA A BOCA!"
Kael avançou.
E socou Voss.
A figura explodiu em fragmentos de luz.
E o laboratório desmoronou.
REENCONTRO Elira e Kael caíram.
No mesmo vazio.
Juntos de novo.
Eles se olharam.
Respirando pesado.
"Você está bem?" Elira perguntou.
"Não. Você?"
"Também não."
Eles riram.
Nervosos.
Aliviados.
Então a voz voltou.
"VOCÊS SÃO MAIS FORTES QUE EU PENSEI."
A figura apareceu de novo.
Maior agora.
Mais sólida.
"MAS AINDA NÃO SÃO FORTES O SUFICIENTE."
O vazio começou a mudar de novo.
Mas dessa vez, Elira estava preparada.
"Kael, me dá a mão."
Ele segurou.
"O que você vai fazer?"
"Algo que ele não espera."
Ela fechou os olhos.
E lembrou.
Não das brigas.
Não das falhas.
Não da dor.
Lembrou dos bons momentos.
MEMÓRIA COMPARTILHADA: PARQUE Domingo de sol.
Naia tinha três anos.
Eles foram ao parque.
Elira lembrou:
O sorriso de Kael quando Naia correu para os balanços.
A mão dele segurando a dela.
O sorvete que derreteu antes que pudessem comer.
A risada de Naia quando Kael fingiu ser um monstro.
E Kael lembrou também.
Porque a memória era deles.
Juntos.
Real.
A memória cresceu.
Preencheu o vazio.
Empurrou a escuridão.
"NÃO! O QUE VOCÊS ESTÃO FAZENDO?"
"Lembrando," Elira disse. "Lembrando de nós."
Outra memória.
MEMÓRIA COMPARTILHADA: PRIMEIRA NOITE EM CASA Com Naia recém-nascida.
Sem dormir.
Exaustos.
Mas juntos.
Kael segurando Naia.
Elira encostada nele.
Assistindo o bebê dormir.
"Nós conseguimos," Kael tinha sussurrado.
"Nós sempre conseguimos," Elira respondeu.
A memória brilhou.
"PAREM! VOCÊS ESTÃO ME DESTRUINDO!"
"Bom," Kael disse.
Mais memórias.
CASCATA DE LEMBRANÇAS Natal. Naia abrindo presentes. Kael vestido de Papai Noel. Aniversário de Elira. Kael queimando o bolo. Naia rindo. Viagem de carro. Cantando músicas ruins. Felizes. Noite de filme. Os três no sofá. Dormindo antes do final. Café da manhã. Panquecas tortas. Amor em cada mordida. Cada memória era uma luz.
Cada luz empurrava a escuridão.
E o Nexo gritou.
"VOCÊS NÃO ENTENDEM! EU SOU FEITO DE MEMÓRIAS! VOCÊS ESTÃO ME ALIMENTANDO!"
"Não," Elira disse, calmamente. "Você é feito de dor. De medo. De trauma."
Kael completou:
"Mas nós somos feitos de amor."
"AMOR NÃO É SUFICIENTE!"
"Talvez não seja," Elira admitiu. "Mas é tudo que temos."
Ela olhou para Kael.
Ele olhou para ela.
E juntos, disseram:
"E é o bastante."
EXPLOSÃO As memórias explodiram.
Luz cegante.
Som ensurdecedor.
Calor impossível.
O Nexo gritou.
Não de raiva.
De dor.
De medo.
De algo que nunca tinha sentido antes:
Derrota.
"NÃO! EU SOU ETERNO! EU SOU—"
A voz cortou.
E tudo ficou silencioso.
Capítulo 25: Sacrifício
CAPÍTULO 25: SACRIFÍCIO Quando a luz apagou, Elira e Kael estavam em um lugar novo.
Não era vazio.
Não era caos.
Era calmo.
Um jardim.
Com flores que ela não reconhecia.
Árvores que não existiam.
Céu que não era céu.
E no centro do jardim:
Uma porta.
Simples.
De madeira.
Com uma maçaneta dourada.
"O que é isso?" Kael perguntou.
Uma voz respondeu.
Não era o Nexo.
Era diferente.
Suave.
Triste.
"A saída."
Eles viraram.
E viram.
Uma criança.
Não mais que sete anos.
Olhos grandes.
Cabelo escuro.
Sozinha.
"Quem é você?" Elira perguntou, gentil.
A criança olhou para ela.
"Eu era o Nexo. Antes de ser... isso."
Kael se ajoelhou.
Ficando na altura da criança.
"Você era humano?"
A criança assentiu.
"Eu fui a primeira. A primeira mente carregada."
"Eles disseram que seria temporário. Que seria seguro."
"Mas eu fiquei presa. E outras vieram. E mais. E mais."
Lágrimas nos olhos.
"E eu absorvi todas. E me perdi. E me tornei... monstro."
Elira sentiu o coração partir.
"Você não é um monstro."
"Sou. Eu machuquei tanta gente."
"Você estava assustada."
A criança olhou para ela.
Surpresa.
"Como você sabe?"
"Porque eu também fico assustada às vezes."
Silêncio.
Então a criança disse:
"A porta leva de volta. Para seu mundo. Seu corpo."
"Mas só pode passar uma pessoa."
Elira e Kael se entreolharam.
"O quê?" Kael disse.
"O Nexo está quebrado. Mas ainda funciona. Por pouco tempo."
"Uma pessoa pode sair. A outra... fica."
"Não," Elira disse imediatamente. "Não, tem que ter outro jeito."
"Não tem."
Kael se levantou.
Olhou para a porta.
Depois para Elira.
"Você vai."
"Não."
"Elira—"
"Não, Kael. Eu não vim até aqui pra te deixar de novo."
"Naia precisa de você."
"Ela precisa de nós."
"Ela precisa da mãe."
Elira sentiu lágrimas caindo.
"Não me peça isso. Não me peça pra escolher."
Kael segurou o rosto dela.
Gentil.
Final.
"Você não está escolhendo. Eu estou."
"Kael—"
"Eu já perdi tanto tempo. Tanto tempo longe de vocês."
Voz quebrando.
"Deixa eu fazer isso. Deixa eu fazer uma coisa certa."
Elira balançou a cabeça.
Chorando.
"Você fez tantas coisas certas."
"Não o suficiente."
Ele beijou a testa dela.
"Conta pra Naia que eu amei ela. Todos os dias. Mesmo quando eu não estava lá."
"Eu vou contar."
"E conta que eu amei você. Mais que tudo. Mais que qualquer projeto. Mais que qualquer coisa."
"Eu sei. Eu sempre soube."
Eles se abraçaram.
Apertado.
Último.
"Eu te amo," Elira sussurrou.
"Eu também te amo. Sempre."
Ele se afastou.
Gentilmente.
E empurrou ela em direção à porta.
"VAI!"
Elira tropeçou.
Segurou a maçaneta.
Olhou para trás.
Kael estava sorrindo.
Lágrimas no rosto.
Mas sorrindo.
"Seja feliz, Elira. Por nós dois."
Ela abriu a boca.
Pra protestar.
Pra gritar.
Pra ficar.
Mas a porta abriu.
E a luz a puxou.
E Kael desapareceu.
Epílogo: Depois do Depois
EPÍLOGO: DEPOIS DO DEPOIS TRÊS MESES DEPOIS Elira acordou no hospital.
Conectada a máquinas.
Médicos ao redor.
"Ela está acordando!"
"Sra. Thorne, você me ouve?"
Ela tentou falar.
Garganta seca.
"K-Kael..."
Silêncio.
O médico baixou os olhos.
"Sinto muito. Ele não conseguiu."
Elira fechou os olhos.
E chorou.
SEIS MESES DEPOIS Elira estava em casa.
Naia ao lado dela no sofá.
Assistindo TV.
"Mãe?"
"Sim, amor?"
"Você acha que o papai está feliz?"
Elira olhou para ela.
Cabelo crescendo.
Olhos iguais aos de Kael.
"Acho que sim."
"Onde ele está?"
Elira pensou.
"Em um lugar bonito. Onde ele pode descansar."
"Ele vai voltar?"
Pausa.
"Não, meu amor. Ele não vai."
Naia assentiu.
Triste, mas aceitando.
"Mas ele nos amava, né?"
"Mais que tudo no mundo."
Naia encostou nela.
"Eu também amo ele."
"Eu sei. E ele sabe também."
Elas ficaram assim.
Juntas.
E pela primeira vez em meses:
Elira sentiu paz.
UM ANO DEPOIS Elira estava no cemitério.
Na frente de uma lápide.
KAEL THORNE
Pai. Marido. Herói.
"Ele tentou. E foi suficiente."
Ela colocou flores.
Rosas brancas.
Favoritas dele.
"Oi, Kael."
Vento suave.
"Naia está bem. Ela está crescendo tanto. Você ficaria orgulhoso."
Pausa.
"Eu também estou bem. A maior parte do tempo."
Lágrimas.
"Eu sinto sua falta. Todos os dias."
Ela tocou a lápide.
"Mas eu estou vivendo. Como você pediu. Estou sendo feliz."
Sorriu.
Triste, mas real.
"Obrigada. Por tudo. Por tentar. Por nos amar."
Ela se levantou.
"Por me deixar ir."
Mais uma olhada.
"Te amo. Sempre."
E ela foi embora.
CENA FINAL Naquela noite, Elira estava no computador.
Escrevendo.
"Memórias são estranhas. Elas mudam. Distorcem. Desaparecem."
"Mas o amor? O amor fica."
"Mesmo quando a pessoa vai embora."
"Mesmo quando dói."
"Mesmo quando parece impossível."
"Kael me ensinou isso."
"Ele não era perfeito. Mas era meu."
"E isso era suficiente."
Ela salvou o arquivo.
Título: "Memórias Apagadas"
Então ouviu:
"Mãe! Vem ver!"
Naia gritando da sala.
Elira sorriu.
Fechou o laptop.
E foi.
Porque a vida continuava.
E ela tinha que viver.
Por ela.
Por Naia.
Por Kael.
[FIM]
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